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O que torna um filme alternativo?

Por| Editado por Jones Oliveira | 22 de Agosto de 2021 às 09h00

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Warner Bros./Copacabana Filmes/Lucasfilm/Theatre Of Material
Warner Bros./Copacabana Filmes/Lucasfilm/Theatre Of Material

Vamos começar pelo básico: o que nos diz o dicionário de língua portuguesa quando perguntamos o que é “alternativo”? O Priberam nos fornece seis sentidos para a palavra e provavelmente o uso mais comum pode ser encontrado na definição que diz "Sujeito a opção; que consente escolha", nos indicando que o alternativo pressupõe a liberdade criativa quando falamos de fazer filmes, o que deveria ser comum a todas as artes. Mas não é bem assim.

É comum um filme dar errado e o diretor levar as culpas (da mesma forma que costuma levar os aplausos e elogios quando sua obra tem sucesso de público e/ou crítica). No entanto, você pode ter percebido que quem ganha o Oscar de Melhor Filme não é o(a) diretor(a), mas sim os produtores (os executivos, as pessoas responsáveis pela organização, logística e, claro, dinheiro). Não raramente, quando o diretor quer ter mais liberdade, ele precisa também bancar o próprio filme, ou seja, também ser um produtor.

Isso expõe o que não deveria ser uma surpresa: o cinema nasceu arte e produto simultaneamente. Mesmo se olharmos para as raízes de tudo, podemos ver como os irmãos Lumière anunciavam as possibilidades científicas com a invenção do cinematógrafo na França, enquanto nos EUA Thomas Edison se apropriava da invenção de William Kennedy Laurie Dickson com intenções comerciais.

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De volta à França, foi nas mãos de Georges Méliès, um ilusionista, que o cinema começou a se desenvolver como uma arte de contar histórias mais complexas, sendo ele também o fundador de gêneros cinematográficos como ficção científica, drama histórico/biográfico, fantasia e terror. O cinema nem sequer havia se estabelecido e já fundou também o “alternativo”, simplesmente porque alguém, em algum momento, encontrou uma função alternativa para as imagens-movimento. Mas como isso ainda funciona hoje?

Podemos não gostar disso, mas é inegável que nos deixamos levar pelos padrões o tempo todo e é comum nos flagrarmos dizendo como um filme deveria ou não deveria ser. Um exemplo bastante fresco pode ser bastante útil para entendermos: quando lançado, o Esquadrão Suicida de David Ayer foi destroçado pelo público e pela crítica, com comentários bastante maldosos e que, até hoje, rendem discussões calorosas na internet. Acontece que Ayer tem deixado claro que o filme não é seu.

Embora ele não cite diretamente os culpados, já sabemos que a produção de filmes que tentaram competir com os sucessos Marvel renderam verdadeiros desastres, como foi também foi o caso do Quarteto Fantástico, inicialmente vendido como um filme de Josh Trank, mas que, agora, traz Stephen E. Rivkin como "diretor não-creditado". Esses são claros exemplos de como os interesses comerciais interferem diretamente no processo criativo, criando os Frankensteins cinematográficos que adoramos odiar.

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Quando David Ayer pediu pela oportunidade de fazer seu corte de Esquadrão Suicida, ele estava querendo realizar a versão alternativa. Todo corte do diretor é um indicativo de que sua ideia original foi alterada contra a sua vontade pelas produtoras — e isso nem sempre significa que o realizador feria melhor que o estúdio. Entre os fãs de Blade Runner: O Caçador de Androides e de Apocalypse Now, por exemplo, existe a discussão sobre quais das versões é melhor.

Mas certamente não é do Liga da Justiça de Zack Snyder que a “galera alternativa” está falando quando diz que quer assistir a um filme alternativo. Então vamos mergulhar em mais uma camada dessa questão.

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Alternativo Hardcore

Liga da Justiça é alternativo, mas não o suficiente para quem quer ver mais padrões sendo quebrados: o alternativo opta por caminhos diferentes aos convencionais. Acontece que estamos tão acostumados com o padrão hollywoodiano que esquecemos que ele é um padrão. Na introdução do livro Manual do Roteiro, Sid Field comenta como chegou a precisar avaliar algumas centenas de roteiros e percebeu haver um padrão no seu gosto, como ele resume neste trecho:

"Minha experiência como leitor me deu a oportunidade de julgar e avaliar, de formular uma opinião: este é um bom roteiro, este não é um bom roteiro. Como roteirista, queria encontrar o que tornava os 40 roteiros que recomendara melhores que os outros 1.960 que lera".

O que Field desenvolve ao longo do livro viria a se tornar um dos maiores pilares da indústria e quase todos os filmes que vemos seguem o padrão de três atos divididos por dois “pontos de virada” (plot points). Até hoje, não é incomum encontrarmos estudantes de cinema tentando enquadrar suas histórias em um esquema que necessariamente precisa passar por etapas específicas de início, meio e fim — e coincide também com a famosa "jornada do herói".

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Você vai encontrar isso em quase todos os filmes de uma hora e meia, que dividem mais ou menos 30 minutos para cada ato. Os blockbusters e filmes mainstream também se apegam a essa regra e raramente oferecem filmes com outras estruturas. Este, no entanto, é apenas um padrão e diz respeito ao roteiro. Inúmeros outros padrões e regras estão espalhados por todo o cinema, dos níveis mais artísticos aos mais comerciais, e o filme alternativo tenta ser uma quebra disso.

Como sabemos, no entanto, quebras sutis como as que a Marvel vem fazendo nos estereótipos dos seus personagens não causam um impacto imediato muito forte nos espectadores e, optando por mudanças graduais ou sutis, pensadas a longo prazo. É no oposto disso que os filmes mais alternativos tentam encontrar o seu espaço: o diferente nos atinge de imediato, ainda que isso possa custar o esquecimento da obra.

Assim, o filme pode ser alternativo por diversos motivos: por rejeitar regras técnicas, estereótipos, narrativas, perspectivas etc. que se tornaram padrão. Assim, o surrealismo de David Lynch é alternativo por não propor uma história que possa ser entendida (é só para sentir mesmo, o entender é por sua própria conta e risco); o trash de Ed Wood é alternativo por fazer sua vontade valer mais que os interesses da indústria; a versão de Snyder da Liga da Justiça é alternativo por recusar a história contada pelo outro diretor e pelo estúdio; A Bruxa de Blair também o é por recusar a ideia de que é necessário uma quantia estratosférica de dinheiro para fazer um filme (e entrar para a história); assim como Glauber Rocha com sua ideia na cabeça e uma câmera na mão; e assim por diante. Os exemplos são infinitos.

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Quanto mais estranhamento nos causa um filme, mais fora do padrão ele se encontra, o que significa que provavelmente é ainda mais alternativo. Nesse sentido, o alternativo também se confunde com o cinema de vanguarda, com o trash, com o experimental e com o cult, esbarrando em muitas outras correntes artísticas pelo caminho.

Não existe filme alternativo

Há quem diga, no entanto, que esse não é um bom conceito. Filme é filme, só que alguns são mais influenciados pelo interesse comercial e outros, menos. Assumir um filme como alternativo significa dizer, como estávamos explicando, que é uma alternativa ao padrão. O perigo disso está em estabelecer o que é o padrão, correndo o risco de deixar a teoria ainda pior se pensarmos que o padrão é o correto, como muitos leitores de Syd Field chegam a cogitar.

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Assumir isso seria deixar em aberto a possibilidade de estabelecermos uma hierarquia: será que o filme alternativo é pior? Será que ele é melhor? É impossível respondermos isso. Além do mais, nada impede que o alternativo seja pop, bagunçando ainda mais qualquer tentativa de separar as coisas. É difícil imaginar isso hoje, mas Steven Spielberg, George Lucas e demais diretores da chamada Nova Hollywood eram diretores alternativos.

O livro Como A Geração Sexo-Drogas-E-Rock'N'Roll Salvou Hollywood, de Peter Biskind, em resumo, é basicamente sobre como os diretores alternativos (muitos deles também independentes) salvaram Hollywood. Star Wars, por exemplo, consegue a proeza de ser (pelo menos em sua raiz) alternativo, independente, vanguardista, cult, pop, geek, nerd, histórico, filosófico e comercial.

Se voltarmos ao Priberam, poderemos ver a última definição, que tem como exemplo justamente ao cinema: "Que ou quem não segue ideias, interesses ou tendências dominantes". É uma ótima definição de como o termo é comumente entendido, mas, como já vimos, existiram e continuam surgindo casos em que o alternativo se tornou dominante (padrão, pop).

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Por fim, é o pop que acaba propondo o dilema final: se o alternativo ficou pop e se tornou padrão, ainda é alternativo? Esse é o exato dilema que vivem movimentos artísticos musicais como jazz, samba, hip-hop, punk, rock, k-pop e tantos outros que, em sua essência, pareciam ser a recusa máxima do padrão.