Mundo Mistério | Episódio 4 mistura afeto, seleção natural e seleção artificial
Por Nathan Vieira |
No início de agosto, a Netflix lançou uma série com o youtuber Felipe Castanhari, do Canal Nostalgia. A primeira temporada, que já se encontra no catálogo, conta com oito episódios. Com isso, o Canaltech está fazendo um especial, destacando o que há de mais científico e tech em cada um desses episódios. No caso, o quarto episódio da série (Do Lobo ao Cão) aborda como os lobos se tornaram os cães que são tão amigos da humanidade hoje em dia.
Conversando com a nossa equipe, Castanhari menciona que diferente das gravações internas da série, que aconteceram exclusivamente em um lugar só - uma mansão na capital paulista - as gravações externas foram gravadas em diferentes localizações. "Visitamos vários lugares, como o Santuário dos Lobos, nos Estados Unidos, na Flórida. Tudo para tentar deixar a série o mais diversificada possível", conta o youtuber.
No episódio, o zelador Betinho (Bruno Miranda) traz um pug para o laboratório, o que ajuda a ilustrar a questão de como os cachorros são bem diferentes dos lobos. Com isso, toda a atmosfera do episódio é bem diferente dos anteriores, que giram em torno de mistérios mais profundos e dignos de altas doses de reflexão.
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Do lobo ao cão
Visando entender melhor como exatamente é essa origem dos cachorros abordada na série, conversamos com Dr. Julio Cesar de Moura Leite, professor do curso de Ciências Biológicas da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) e biólogo do Museu de História Natural Capão da Imbuia, em Curitiba (PR).
Segundo o professor, a história começou com a aproximação dos homens e dos lobos, numa época em que ainda éramos caçadores-coletores e ainda não havíamos desenvolvido a agricultura. Dividíamos o mesmo espaço e tínhamos interesses em comum: obtenção de alimento, abrigo e proteção contra predadores, por exemplo. "Com isso, a convivência deve ter sido bastante vantajosa naquele momento, o que deu origem a um processo de coevolução, ou seja, quando o processo evolutivo de uma espécie influencia decisivamente a evolução de outra espécie", explica Dr. Julio.
Antes de haver uma relação de afetividade, como vemos entre homens e cães hoje em dia, houve uma relação de interesses mútuos: lobos se aproximando de acampamentos humanos (ou cavernas) em busca de restos de alimento. É possível que, em algum momento, esses lobos no início do processo de domesticação tenham auxiliado os homens em atividades de caça, e que os primeiros pets da história tenham sido filhotes órfãos ou abandonados de lobos que foram adotados por nossos ancestrais.
"Do ponto de vista humano, devia ser bastante útil ter um animal como o lobo por perto: esses animais têm o olfato e a audição muito apurados, o que auxiliaria na detecção precoce da aproximação de um predador, por exemplo. Um dos fatores que deve ter influenciado decisivamente nessa parceria é o fato de ambas serem espécies sociais, formando grupos com relações muito próximas entre os indivíduos", analisa o especialista. "Reconstituir exatamente como foi esse processo de transformação é uma tarefa árdua. Hoje em dia é fácil reconhecer cães e lobos como formas diferentes, mas essas diferenças foram se tornando evidentes só com o passar do tempo".
Mas de onde exatamente os especialistas tiram esses dados? Segundo Dr. Julio, as principais pistas que temos são baseadas em duas frentes de pesquisa. A primeira é a arqueologia, que estuda os registros de ossadas humanas e lupinas encontradas juntas, o que é considerado como uma evidência indireta de convivência das duas espécies. "A partir desses registros, sabe-se que elas convivem há pelo menos uns 14, 15 mil anos. Talvez muito antes disso", observa o professor.
Ele ainda menciona um registro de homens e lobos já modificados encontrados juntos em cavernas da Sibéria há mais de 30 mil anos. Aí entra a segunda fonte de informações, que é a genética molecular. "Comparando os mesmos genes em raças de cães e populações de lobos, pode-se estimar o grau de diferenciação genética entre eles e a existência de hibridização entre essas formas. Hoje em dia, pode-se mesmo estimar quando aconteceu a divergência que deu origem aos lobos e cães modernos. O problema é que a nossa interpretação de diferentes genes (ou utilizando métodos diferentes) nem sempre conta a mesma história", Dr. Julio acrescenta.
Seleção natural x seleção artificial
Com isso, temos duas vertentes: a seleção natural e seleção artificial. Segundo o professor, a seleção natural é um processo que ocorre nos seres vivos, através do qual indivíduos mais adaptados ao ambiente em que vivem têm muito mais chance sobreviver (e reproduzir) do que os menos adaptados. "Através da genética, percebe-se que as possibilidades de geração de formas diferentes são inúmeras. No entanto, a seleção natural opera constantemente sobre as espécies, depurando, favorecendo a manutenção de indivíduos com características mais bem adaptadas e eliminando o que não funciona tão bem. Por isso é tão difícil detectar essa variabilidade nos animais selvagens", explica.
Quanto à seleção artificial, é o seguinte: no decorrer da sua evolução, o homem aprendeu a cultivar as espécies vegetais e a criar animais. Mais do que isso, descobriu que podia interferir no desenvolvimento natural dessas espécies. Aprendeu que, selecionando e cruzando formas que lhe fossem mais interessantes (por exemplo, variedades de plantas que produzissem mais sementes ou de animais mais dóceis e que produzissem mais carne ou leite), obteria vantagem (no caso, uma maior produtividade de alimento).
"Se a seleção natural é um processo que determina a sobrevivência dos mais aptos, a seleção artificial é moldada pelos interesses humanos. Quando nossos ancestrais provavelmente matavam os lobos mais agressivos e aceitavam a presença dos mais mansos, incluindo filhotes, estavam realizando uma seleção inconsciente, que se aproxima e mesmo se confunde com a seleção natural. Quando, mais tarde, o homem passou a desenvolver raças de cães com fins específicos como guerra, caça, companhia, o fazia de forma metódica, graças às técnicas de criação e cruzamento que aprendeu com o tempo", explica o Dr. Julio.
Ele acrescenta que todas a plantas que cultivamos (como por exemplo, o milho, o arroz e o trigo) e animais que criamos (desde cães e gatos até galinhas porcos, vacas, carneiros, cabras e cavalos dentre outros) são bons exemplos de espécies que se modificaram muito através do processo de domesticação e seleção artificial. "É muito provável que muitas das raças e variedades criadas artificialmente pelo homem dificilmente seriam selecionadas em condições naturais".
Justamente por isso que existem várias raças diferentes de cachorros que já não têm nada a ver com lobo. Dr. Julio conta que à medida em que os cães foram sendo criados pelo homem, foram ficando cada vez mais imunes ao processo seletivo natural. Assim, formas variantes que dificilmente sobreviveriam na natureza por serem menos aptas no contexto geral mantinham-se vivas, na medida em que agora estavam submetidas à seleção artificial centrada nos interesses humanos. Esses interesses eram variados: produzir um animal de companhia, de caça, de guarda ou mesmo de tração, entre outros.
"De acordo com o interesse, cruzavam-se animais que apresentassem as características desejadas (por exemplo, comportamento dócil) e depois as sucessivas gerações desses indivíduos. A cada geração, selecionava-se os animais que mais se aproximavam das características desejadas e se realizava novos cruzamentos", o especialista explica. Gradativamente, as características desejadas iam se tornando mais e mais frequentes, até se tornarem tão diferentes a ponto de serem consideradas raças. "Um verdadeiro processo de moldagem de acordo com o interesse, geração após geração. Como isso ocorreu em vários lugares diferentes do mundo e em diferentes momentos, o resultado foi o surgimento de centenas de raças caninas. A mesma coisa aconteceu com outros animais domésticos", conclui.