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Crítica | Resgate é um salto da fé no bom cinema de ação

Por| 28 de Abril de 2020 às 09h54

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A manutenção de erros é fundamental para um filme que não tem vergonha alguma de assumir sua comercialidade. Por outro lado, se errar é humano, incluir erros propositais pode tornar a experiência de assistir ao filme mais próxima e até mais crível. Caso contrário, John Wick é apresentado como uma lenda – o Bicho-Papão – em poucos minutos durante o início do seu primeiro filme, mas, aqui, em Resgate (disponível na Netflix), a ideia parece ser deixar que os acontecimentos criem Tyler Rake (Chris Hemsworth) para os olhos do espectador.

Ao mesmo tempo em que essa abordagem é clássica, especialmente entre os filmes de ação da década de 1980 – assim começa a exposição de John McClane em Duro de Matar por exemplo –, ela também é perigosa, necessitando, geralmente, de uma figura carismática para manter o interesse de quem assiste até que o ritmo comece a fluir e as engrenagens do filme atinjam o pleno funcionamento.

Cuidado! A crítica pode conter spoilers!

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Salto da fé

Hemsworth, então, é peça-chave para a construção do todo. O ator tem carisma o suficiente para que a exposição inicial não desconstrua seu magnetismo natural. Isso porque, revelando o protagonista, à primeira vista, como alguém arrogante – deitado como se estivesse morto enquanto escuta a conversa de dois colegas –, a direção de Sam Hargrave adentra em uma concepção simbólica ao mostrar um salto que, à primeira vista, não passa de uma prova do quanto aquele homem é badass: são metros e mais metros de um mergulho quase sobre-humano.

Existem subtextos a serem extraídos desse ponto que acabam por dar peso não somente ao personagem, mas ao filme inteiro. Isso porque o salto, que, ao ser humanamente impensável (a reação de um dos colegas é certeira a esse ponto), pode ser traduzido como um "salto da fé". Essa expressão é utilizada para explicar a ruptura do estado ético para o religioso da existência – de acordo com o filósofo Søren Kierkegaard. Não é por acaso que Tyler não somente mergulha, mas repousa debaixo d’água em meditação, até o limite de sua respiração. Esse mesmo salto foi, inclusive, bastante divulgado e comentado quando do lançamento de Assassin's Creed (de Justin Kurzel, 2016). Mas, naquele filme, a relação entre ética e religião era muito mais explícita e até óbvia.

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Um respiro

A profundidade alcançada por Resgate em pouco tempo deve-se especialmente ao tratamento dado ao roteiro de Joe Russo (um dos irmãos responsáveis por dar mais consistência ao Universo Cinematográfico Marvel). Baseado em uma graphic novel criada por ele, seu irmão (Anthony), Andy Parks e Fernando León, Russo não somente cede profundidade a Tyler – reforçada por breves flashbacks que humanizam o personagem –, mas logo inicia uma inserção de elementos que diferenciam o filme de uma ação qualquer.

Dessa maneira, há a premissa da não-existência de um herói bom e puro contra o mal. Ninguém em Resgate – com exceção das crianças – pode ser um exemplo moral. O próprio Tyler é um mercenário. A questão é que, enquanto seus adversários crescem em maldade, sua humanidade (a de Tyler) vai se descortinando.

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A direção de Hargrave (que é estreante em um longa-metragem) é tão consciente dessas questões mais íntimas em meio a toda a ação que faz da briga entre os dois personagens mais complexos (Tyler e Saju – Randeep Hooda) a mais intensa das quase duas horas do filme. Em um plano-sequência de 10 minutos (provavelmente mais), Hargrave consegue intensificar a perseguição e as lutas de um jeito assustador para alguém estreante. Durante esse tempo, vê-se dentro e fora de um carro em perseguição, sobe-se escadas, passa-se por caminhos apertados, salta-se de um primeiro andar, volta-se para um carro... é tudo, inclusive os cortes invisíveis, tão bem coreografado e na busca por realidade – justamente por se manter em seu universo – que, ao final desse trecho, um respiro pode parecer necessário tanto para os personagens quanto para quem os assiste.

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O último mergulho

É interessante como, apesar de toda a brutalidade das brigas – que em muito lembram do trabalho de Chad Stahelski exatamente na trilogia (até agora) John Wick e também de David Leitch (codiretor do primeiro filme sobre o Bicho-Papão de Keanu Reeves) em Atômica (de 2017) –, existe cada vez mais uma intromissão na mente da personagem de Hemsworth. Sua interação cada vez mais pessoal com Ovi (Rudhraksh Jaiswal) transforma o mercenário naturalmente carismático em um assassino muito mais humano. Ao mesmo tempo, os acontecimentos alheios à presença de Tyler – como o assassinato de uma criança aos olhos do traficante Amir Asif (Priyanshu Painyuli) – dão validade às ações dele (de Tyler) para muito além do seu mercenarismo e, simultaneamente, tornam o traficante um vilão odioso, merecedor, em tese, de sua última aparição no filme.

Para todo esse híbrido de ação e humanização, Hargrave é certeiro em seus planos que dificilmente separam Tyler e Ovi, unindo-os tanto em discurso falado quanto em linguagem visual. Quando resolve afastá-los, é porque algo ameaça ou tende a dar errado, sendo um ponto claro nessa abordagem a revelação de Gaspar (David Harbour) a Tyler, que surte um duelo finalizado com a chegada de Ovi à sala.

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A brutalidade de Resgate é, de todo modo, a camada superior de uma história com muitas reflexões possíveis. Sejam elas sociais e políticas, sobre a situação dos órfãos comandados pelo tráfico ou sobre as ações policiais; sejam elas mais íntimas, sobre a natureza humana e até onde podemos ser ou quem somos a partir do nosso passado – Tyler é um reflexo muito claro do que viveu –; essas reflexões, no final das contas, voltam-se ao salto da fé: o mergulho dado por ele (Tyler) ao final é uma intromissão direta, após tanta luta, nos pensamentos de Kierkegaard. Ali, o homem depara-se com a consciência de sua finitude, com a certeza da morte.

Mas estamos falando de um filme de ação que não tem vergonha alguma de assumir sua comercialidade. Os erros planejados – como aqueles que fazem Tyler errar caminhos em uma fuga – acabam por transformar o protagonista em alguém tão humano quanto John Wick, mas menos mágico. As falhas, então, podem ser paralelas à ideia de manter o herói vivo apesar de tudo. O desfoque, ao final, após mais um salto (dessa vez de Ovi), pode rebater a filosofia e deixar viva a chance de uma sequência. Ou pode ser apenas a membrana de um estado religioso da situação: morre o homem e permanece sua aura. A verdade é que, no fim de tudo, é cinema e, então, pode ser o que quiser.

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*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Canaltech