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Crítica | O Legado de Júpiter é drama shakespeariano com superpoderes

Por| Editado por Jones Oliveira | 07 de Maio de 2021 às 04h00

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Em 2017, quando a Netflix adquiriu o selo de quadrinhos de Mark Millar, o Millarworld, ela já mirava uma produção própria do gênero de super-heróis que pudesse ampliar sua frente diante da concorrência dos heróis da Marvel e DC, no Disney+ e no HBO Max, respectivamente; e de The Boys do Amazon Prime Video. O Legado de Júpiter adapta o choque geracional dos gibis homônimos e amplia o drama shakespeariano com superpoderes da versão original.

O Legado de Júpiter narra a história atual de um grupo de super-heróis veteranos protegendo a Terra há décadas, enquanto monitora, treina e supervisiona a nova geração de defensores, muitos dos quais são seus próprios descendentes. A coisa começa a desandar quando o supervilão Estrela Negra (Tyler Mane) foge da penitenciária máxima para superseres, a Supermax, e é mortalmente ferido por Brandon Sampson/Paradigma (Andrew Horton), filho do poderoso e popular Sheldon Sampson/Utópico (Josh Duhamel).

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O evento deixa um rastro de sangue que escala para mais violência entre os jovens heróis, que andam mais vaidosos e inconsequentes. A nova geração começa a questionar o Código, um conjunto de regras que há décadas serve como uma bússola moral para que os superseres não usem seus poderes para governar ou matar pessoas. A sociedade, que até então se sentia protegida e concordava com esses valores, também passa a se perguntar se as diretrizes impostas pela União da Justiça ainda se aplicam aos dias atuais.

O mundo se tornou mais complexo e perigoso, e “bem” e “mal” ou “certo” e “errado” ficam a cada dia mais nebuloso. E como funcionam as famílias dessas criaturas que se autoproclamam os defensores da Terra? E do que será o legado de heroísmo perante a tantas mudanças e o crescente conflito entre pais e filhos?

A trama de O Legado de Júpiter gira em torno dessas e outras questões, que destaco logo abaixo. Mas atenção: o texto contém spoilers sobre a primeira temporada da série, então, esteja avisado!

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Fidelidade aos quadrinhos

A primeira coisa que se nota logo em O Legado de Júpiter é a caracterização visual dos personagens, que realmente ficaram muito próximos dos desenhos de Frank Quitely. O ilustrador escocês já aplicava um layout que respeita o funcionamento prático das roupas, então, a transição para a realidade não exigiu grandes mudanças.

Os traços finos de Quitely foram fielmente reproduzidos nas texturas dos cenários, figurinos e personagens, inclusive nas rugas dos heróis envelhecidos. Essa característica estilizada dos quadrinhos ficou tão parecida que pode até mesmo causar um pouco de estranhamento, já que, na comparação com as versões mais jovens dos protagonistas, às vezes ficam evidentes algumas linhas artificiais na maquiagem.

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A importância do design e da narrativa criada por Quitely é tão grande que há até mesmo um caminhão, logo na primeira cena de ação, que leva seu nome. E Chloe Sampson (Elena Kampouris), com seu ar jovial, moderno, debochado e conectado com os tempos de vaidade nas redes sociais, é quase uma transposição literal da personagem de papel para as telinhas da Netflix.

Já com relação a história, há mudanças na estrutura narrativa, principalmente no enredo de origem sobre como os personagens ganharam seus poderes. Isso é compreensível, já que, para promover melhor as interações dramáticas e os conflitos familiares, essa jornada foi costurada com flashbacks recorrentes em todos os capítulos. Além disso, vários trechos com passagens rápidas ganharam mais detalhes, preenchendo lacunas que antes ficavam subentendidas na mente do leitor.

Trama intercala passado e futuro

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Toda vez que há uma adaptação, sempre pergunto-me: o que a nova obra pode fazer, em termos de narrativa, para contribuir para a original? O que só o cinema pode fazer que os quadrinhos não? Normalmente, as respostas estão nas sugestões audiovisuais, já que criamos os sons das revistas de papel em nossas mentes; e no drama, já que a Sétima Arte é especialista em fazer com que nos vejamos mais facilmente em personagens de carne e osso.

A Netflix aposta, então, em uma narrativa que amplia os sentimentos e o comportamento dos personagens a partir da interpretação de cada ator. E, de forma esperta, ela também usa seu próprio “DNA” para fazer isso. Desde que Stranger Things se tornou seu maior hit, o serviço de streaming passou a reproduzir a fórmula de núcleos familiares conduzidos, basicamente, em duas frentes: a dos pais, visando o público adulto; e a dos filhos, para os mais jovens. Isso é bastante perceptível em séries como Sex Education, Atypical, entre outras com proposta semelhante.

Então, embora seja uma atração sobre super-heróis, é, acima de tudo, uma história sobre conflitos familiares e geracionais, envolvendo o legado de “poderes e responsabilidades”. O centro de tudo é Sheldon, que ainda não confia em seu sucessor, seu filho Brandon, enquanto lamenta o abandono da filha Chloe para esse papel. Enquanto isso, Grace Sampson/Lady Liberdade (Leslie Bibb) e Walter Sampson/Onda Mental (Ben Daniels) também começam a questionar se o Código estabelecido para os heróis da “Velha Guarda” é mesmo adequado para os tempos atuais.

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A narrativa, então, passa a alternar constantemente entre o passado e o presente, mostrando como Sheldon começou a reunir os amigos e familiares em uma viagem improvável para uma ilha, nos anos 1930; e como os filhos estão lidando com os problemas que não podem resolver porque não conseguem traçar seus próprios caminhos, enquanto enfrentam as sombras dos próprios pais. Ao passo em que vamos descobrindo como a União da Justiça foi formada e como seus membros receberam os poderes, também vemos sua própria desintegração — há uma certa simetria na narrativa de esperança e destruição, até mesmo visual.

E tudo isso é narrado com os clássicos conflitos familiares das tramas shakesperianas, com direito a um romance à la “Romeu e Julieta” entre Chloe, filha do maior herói do mundo; e Hutch (Ian Quilan), filho do maior vilão do planeta, George Hutchence/Skyfox (Matt Lanter).

Da Era de Ouro das HQs aos dias atuais da série The Boys

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Em O Legado de Júpiter, vemos um tratamento mais verossímil sobre como realmente seria o cotidiano de super-heróis. O que eles fazem quando acordam e se levantam para “trabalhar”? O que fazem nas horas vagas? Eles vão para a balada, transam casualmente ou usam drogas? Como são as discussões entre pais e filhos com superpoderes? E quais as reais consequências de poder arrancar a cabeça de alguém com um soco?

Essa pegada mais realista e violenta também é explorada em The Boys, o que naturalmente vai gerar comparações, mas não se engane: enquanto a atração do Amazon Prime Video já nasceu nos quadrinhos como uma paródia ácida ao gênero dos super-heróis, O Legado de Júpiter está muito mais para uma crítica e uma homenagem à mitologia moderna. A estrutura remete, por exemplo, a histórias de piratas e às tramas misteriosas das pulp fiction que faziam sucesso no começo do século XX e influenciaram a Nona Arte; à Era de Prata, dos gibis de ficção científica; e a publicações mais recentes.

Para sua trama, Millar usou elementos da mitologia romana, daí o nome de OLegado de Júpiter; e da religião, com forte influência do cristianismo, algo presente nas primeiras publicações de heróis dos anos 1930. Quando o Superman deu início à Era de Ouro dos quadrinhos, em 1929, os Estados Unidos passavam por uma grande crise econômica, com a famosa Grande Depressão e a queda da Bolsa de Valores de Nova York. O Homem de Aço é muitas vezes comparado com a figura de Jesus Cristo, por ser criado por um casal humilde e ter se tornado uma referência de esperança para mundo, especialmente em um momento de crise — veja bem, ele até vem do céu, ainda bebê, enrolado em um paninho vermelho.

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E a própria caracterização e a jornada do Utópico remetem a isso. Ele tem os cabelos longos e grisalhos, com uma barba que se assemelha ao visual mais lembrado de Jesus Cristo. O Código serve quase como a Bíblia na narrativa e grande parte do conflito interno de Sheldon e de Brandon reside na culpa cristã. E como os deuses são alimentados pela fé, a grande preocupação do Utópico é que a humanidade e a próxima geração deixem de acreditar no Código, em um cenário em que o mundo vê a escalada do ódio e de medidas extremas — o que, de certa forma, pode espelhar o momento em que vivemos.

Afinal, como as pessoas deixaram de acreditar em deuses no passado? Simplesmente deixando a fé de lado. Então, a saga do Utópico e d'O Legado de Júpiter envolve a crença, já que, sem ela, essas criaturas podem deixar de existir e se tornarem apenas lembranças.

Vale a pena?

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O Legado de Júpiter é uma homenagem aos super-heróis, com uma mistura de mitologias clássica e moderna, com direito a críticas à religião e muito drama entre os heróis. É mais uma divertida tentativa de projetar como seria a realidade se realmente tivéssemos deuses na Terra, vivendo entre nós. Coloque nesse mix várias referências aos quadrinhos, da capa do primeiro gibi do Superman a conceitos já vistos na graphic novel Reino do Amanhã, e você tem mais uma boa atração do gênero.

Quem espera muita pancadaria e ação pode se decepcionar um pouco, já que, como dito, o foco aqui é no drama familiar que atravessa décadas. Mas o elenco e os personagens são carismáticos, o que prende a atenção nos oito episódios de uma hora cada, especialmente quando vemos mais dos conflitos dos jovens — que, provavelmente, terão mais espaço na segunda temporada.

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Sim, tudo indica que teremos um segundo ano, pois a season finale revela quem realmente é o vilão por trás de tudo e encerra a trama do passado justamente quando a União da Justiça é formada. Então, pode aguardar que a trajetória da família Sampson ainda vai dar o que falar.

O Legado de Júpiter está disponível no catálogo da Netflix para todos os assinantes.