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Crítica | O Diabo de Cada Dia traz relações perturbadoras com a realidade

Por| 18 de Setembro de 2020 às 09h45

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Sendo o cinema, inicialmente, uma narrativa visual que, para boa parte dos historiadores, tem suas raízes na literatura, é sempre ousado quando há um retorno às origens. Contar uma história por meio de uma narração em off pode retirar a força das imagens e concentrar quase tudo no texto. O Diabo de Cada Dia, assim, acaba por ficar preso no meio, em uma espécie de transição entre passado e futuro.

Acontece que, ao mesmo tempo em que existe essa construção narrativa perigosa, existe também a criação de uma unidade que se dá, justamente, por causa dessa escolha. A ousadia, que parte do roteiro do próprio diretor Antonio Campos (de Simon Assassino — filme de 2012) e de seu irmão estreante Paulo Campos, é permanecer nesse redemoinho de informações, narradas pelo escritor Donald Ray Pollock — autor do romance original —, buscando, a todo custo, fazer com que as imagens tenham valor.

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Para isso, há uma procura que pode ser clara pelo não-mostrar, pelas insinuações. Campos, constantemente, foge do choque para deixar que as lacunas sejam preenchidas pelo próprio espectador. Muitas imagens, dessa forma, são completadas em nossas mentes do mesmo modo em que são formadas enquanto lemos um livro.

Atenção! Esta crítica contém spoilers sobre o filme!

Mistura com a realidade

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Não que o diretor fuja de alguns momentos necessários, mas ele parece compreender e respeitar a potência do texto de Pollock. Nesse sentido, existem, claro, momentos explícitos, mas eles tendem a funcionar pontualmente, como se bastasse ver somente uma vez para que entendamos o todo. É o caso, por exemplo, do soldado Gary Matthew Bryson (Jason Collett) que, inocente, pega carona com Carl (Jason Clarke) e Sandy (Riley Keough) e é visto, antes de ser assassinado, sexualmente mutilado. Mas é rápido, com a montagem de Sofía Subercaseaux (de A Taste of Sky) agindo exatamente a favor dessa atitude imagética velada.

Essa representação, portanto, enquanto minimiza o impacto do que se vê, potencializa a história em si e traz à tona relações muito próximas da atualidade. Isso é de uma condução fundamental para a percepção do todo de O Diabo de Cada Dia, porque uma história que se preze encontra meios de ter alma e esta nunca está no objeto (no caso, no filme), mas em quem entra em contato com a obra.

Pensando nisso, as relações do filme com a atualidade são perturbadoras: da alienação que pode ser causada pela entrega total a uma crença — vide Roy (Harry Melling) — à desorientação imposta por um falso profeta — o pastor interpretado por Robert Pattinson — há uma mistura com a realidade difícil de fechar os olhos e também de engolir. É como se, em nossas fraquezas, estivéssemos sempre predispostos a nos entregarmos ao que quer que seja que nos faça sentir vivos.

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Após o último corte...

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Ainda, Campos demonstra o quanto a vida pode ser perigosamente cíclica: Se Willard (Bill Skarsgård) é um ex-combatente da Segunda Guerra Mundial — e carrega o trauma do que presenciou —, seu filho, Arvin (Michael Banks Repeta e Tom Holland), finda com a possibilidade de ser um soldado na Guerra do Vietnã. Esse micro familiar é uma representação tanto do quanto estamos inclinados a sermos tal qual nossos pais quanto do quanto o mundo nos condena a buscar a dor para aliviarmos... a dor.

Ao passo que a vida de Willard, desde a Guerra, acaba o tornando um pai temente por culpa, sofrido e, por fim, psicologicamente destruído, seu filho cresce como se existisse uma batalha constante em cada esquina. O macro de uma guerra como a vivida pela personagem de Skarsgård acaba se transformando no micro dolorido do dia a dia e o micro desse dia a dia vivido por Arvin o leva ao macro contra os vietcongues.

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No final das contas, O Diabo de Cada Dia consegue superar a possível fragilidade da narração em off intermitente porque a direção de Campos a utiliza para preencher lacunas sem causar exposição exagerada. Então, é por ficar preso entre o passado e o futuro que o resultado pode parecer tão atual, tão pertinente e, de repente, assustador. Além disso, como Arvin, mesmo citando o Vietnã, permanece vivo, a lacuna de uma mudança, de uma sobrevida, fica aberta. Cabe a nós imaginarmos, como nos melhores livros, o que acontecerá após a última linha de leitura ou, no caso, depois do seu descanso, depois do último corte.

O Diabo de Cada Dia pode ser assistido pelos assinantes da Netflix.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Canaltech.