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Crítica Não! Não Olhe | O monstro que devora a gente

Por| Editado por Jones Oliveira | 24 de Agosto de 2022 às 16h00

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Universal Pictures
Universal Pictures

Não! Não Olhe! é um filme que te desafia tanto enquanto crítico quanto como espectador. O novo longa de Jordan Peele é uma daquelas histórias que de fazem sair sair do cinema questionando o que diabos acabou de ver. É uma trama feita para incomodar e te fazer pensar na obra para além das duas horas que você está em frente à tela — e que, mesmo assim, pode fazer com que você não chegue a nenhuma conclusão.

Em linhas gerais, a proposta é bem simples. Trata-se da história de dois irmãos criadores de cavalos que passam a lidar com o que parece ser um disco voador que começa a assombrar a propriedade. Só que estamos falando de Jordan Peele e é claro que há algo a mais nisso aí.

Tanto em Corra! quanto em Nós, o cineasta trouxe o terror e o suspense servindo como alegorias para o verdadeiro horror social moderno, discutindo temas como racismo e invisibilidade social com uma elegância tão surpreendente que não é estranho ver como esses filmes rapidamente se tornaram queridinhos do público — o que também justifica a expectativa para Não! Não Olhe!.

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Contudo, em seu novo projeto, o diretor deixa de lado essas questões sociais mais evidentes e parte para uma crítica do próprio entretenimento, transformando-o nesse grande monstro que devora não só nossa atenção, mas também pessoas — uma verdade para a qual nós convenientemente evitamos olhar pelo bem do show. No fim das contas, ninguém quer saber como a salsicha é feita.

O incômodo como Fio de Ariadne

Talvez a grande jogada e mérito de Não! Não Olhe! seja tornar toda essa mensagem bastante sutil, em uma espécie de brincadeira metalinguística com o discurso que ele apresenta. Afinal, estamos dispostos a olhar para o que há por trás desse monstro ou estamos interessados apenas no espetáculo?

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Esse jogo faz com que esse seja o filme menos óbvio do diretor. Você pode realmente vê-lo apenas como uma história de alienígena e monstro com uma família lutando para entender o que diabos está acontecendo e sobreviver a essa desgraça toda, mas a trama deixa algumas pontas soltas que causam incômodo e que te fazerem querer ir além — a ponta de um Fio de Ariadne que vai ajudá-lo a entrar nesse labirinto em busca de um significado para o que Peele quis contar com essa sua nova fábula surreal.

Isso ficou claro não só no filme, mas nas conversas após a sessão. Um amigo que assistiu ao longa comigo defendia que esse era a história mais simples do diretor, que se tratava de uma trama clássica de monstro e que, ao contrário dos projetos anteriores, não trazia aquela carga crítica pesada. Por outro lado, o tal incômodo me fazia tentar juntar as peças para entender o que diabos havia acabado de assistir.

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E o grande charme de Não! Não Olhe! é mostrar que, de certo modo, ambos estavam certos. A diferença é que cada um olhou para um aspecto não só da história e das alegorias apresentadas na trama, mas para o próprio monstro a que o diretor se refere.

Essa questão de perspectiva é algo que o próprio roteiro aborda à sua maneira. De um lado, temos os irmãos OJ (Daniel Kaluuya) e Emerald (Keke Palmer) tentando fazer um registro do tal disco voador para conseguirem lucrar com isso, mas se dando conta que as coisas não são tão simples assim e que a própria verdade pro trás do objeto voador não identificado esconde uma realidade muito mais complexa. Do outro, o empresário Jupe (Steven Yeun), um ex-astro mirim e que ainda vive pelo fascínio do espetáculo e que é incapaz de encarar as atrocidades do mundo no qual ele sempre esteve inserido.

E apesar de temos esses dois pontos de vista bastante distintos, todos estão diante do mesmo fenômeno e, por isso mesmo, vendo a mesma coisa. A diferença, contudo, é que Jupe é incapaz de ver além do véu e se apega apenas à primeira camada, enquanto os irmãos já conseguem encarar as coisas além disso, olhando para aquilo que não deve ser visto.

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Essa é uma chave de leitura que, inclusive, ajuda a explicar o porquê do nome nacional. Muita gente se questionou porque o longa chegou aqui sendo chamado de Não! Não Olhe!, mesmo com outras expressões traduzindo muito melhor o sentimento. Contudo, a própria escolha de palavras da distribuidora nacional serve como guia para aquilo que vamos encarar nesse fábula bizarra.

A camada dentro da camada

Só que é claro que Jordan Peele não ia se limitar apenas a fazer uma crítica ao cinema sem trazer algumas das questões que mais lhe são caras e que marcam bastante seu trabalho até aqui. Então, mesmo que de forma não tão evidente quanto nos filmes anteriores, a questão racial também está presente em Não! Não Olhe!.

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Ao perceber que o longa traz os holofotes para a espetacularização do entretenimento — com o consequente apagamento de seus bastidores —, é possível ver como o cineasta aponta os dedos para aquilo que realmente causa incômodo: o fato de a indústria ser esse monstro que devora gente.

Como dito, toda a motivação dos irmãos OJ e Emerald não é sobreviver ao monstro como em um filme clássico do gênero, mas fazer um registro definitivo do alienígena para lucrar em cima daquilo e colocarem seu nome de vez no mundo do entretenimento. É sobre serem reconhecidos em um mundo em que todo mundo está lutando por seu lugar ao sol, ainda que apenas alguns poucos tenham chances reais.

Isso fica claro já quando a gente entende a origem da dupla. Eles são bisnetos do jóquei que permitiu a primeira animação do cinema e, embora o The Horse in Motion tenha entrado para a história do cinema, o nome que entrou para os anais foi do fotógrafo inglês Eadweard Muybridge e não do jóquei negro que andava no animal.

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A escolha desse background é bastante significativa quando a gente olha para a mensagem geral que Peele desenvolve em Não! Não Olhe!. No fim das contas, o que o diretor aponta é justamente o apagamento desses profissionais que a gente não faz ideia de quem são e que são engolidos e regurgitados por esse grande monstro sem que a gente tenha coragem de olhar para o que acontece.

E isso vai passar também pela questão racial. Não por acaso, os protagonistas são dois negros que contam com a ajuda de um rapaz latino ou que encaram a derrocada de um empreendedor asiático. O único branco na história é um renomado diretor de cinema que já chegou ao topo da montanha que os demais jamais vão alcançar — como ele próprio diz — e que encontra seu fim ao olhar para o monstro que ele nunca teve coragem de encarar ao longo de toda sua vida.

Vale a pena assistir a Não! Não Olhe!?

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Dessa forma, não há como dizer que Não! Não Olhe! é o filme mais simples de Jordan Peele. Na verdade, ele é o exato oposto. Enquanto Corra! e até Nós tinham uma mensagem bastante clara em suas alegorias fantasiosas, o novo longa é como aquele quebra-cabeça em que as peças não parecem fazer muito sentido e que te forçam a pensar nelas para além daquelas duas horas que você passa no cinema para poder visualizar a imagem como um todo.

Nesse ponto, as atuações de Daniel Kaluuya e Keke Palmer são os grandes destaques. O rapaz já tinha surpreendido o mundo quando se apresentou em Corra! e, desde então, vem se mostrando um excelente ator — o que se confirma por aqui. Ele é sempre muito contido e expressa muito bem esse incômodo constante que dá o tom ao roteiro como um todo.

Já Palmer começa a se destacar agora e é quem realmente rouba a cena. Em Não! Não Olhe!, ela é essa garota extrovertida que faz muito bem essa transição da jovem que quer viver pelo show até se dar conta do tamanho do monstro que vai ter que encarar e precisa decidir se está realmente disposta a isso. E ela entrega esse papel de forma tão natural e espontânea que é muito fácil se apaixonar, ainda mais graças ao ótimo contraste que tem com seu irmão.

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Ainda assim, o grande ponto é justamente a assinatura do diretor. Embora não seja seu projeto mais palatável, é nítido que estamos diante de um filme de Jordan Peele pelo simples incômodo que ele deixa em sua mensagem, por mais que ela não soe clara à primeira vista. Ele consegue cutucar a ferida e, a partir do desconforto subsequente, fazer com que a gente desobedeça aquilo que o próprio título propõe. Na verdade, o que a gente precisa fazer é olhar e entender o que se esconde por trás do espetáculo. É encarar o monstro e tudo aquilo que ele oculta — ou se permitir ser devorado por ele.

Não! Não Olhe está em cartaz nos cinemas de todo o Brasil; adquira seu ingresso na Ingresso.com.