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Crítica | Meu Amigo Totoro mostra a relação de otimismo do eu com o mundo

Por| 26 de Maio de 2020 às 11h15

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Studio Ghibli
Studio Ghibli

Um filme é realmente atemporal quando continua dialogando com o público mesmo anos após a sua concepção. De 1988, Meu Amigo Totoro (disponível na Netflix) é uma das muitas obras-primas de Hayao Miyazaki, que, dentre inúmeras outras coisas, sempre demonstrou em seus filmes a capacidade de tratar de temas muito complexos com uma leveza que parece incompatível com o subtexto. Os sentimentos negativos não ofuscam a beleza da fantasia, pelo contrário: o universo imaginário que o autor nos fornece é uma válvula de escape. Escrevo este texto em meio à situação de isolamento e, agora, Meu Amigo Totoro encontrou em mim sentimentos que não haviam sido tocados por ele antes.

É sempre bom recordar que animação não é coisa de criança, ou, ainda melhor, quem disse que a infância não tem algo a ensinar? Meu Amigo Totoro é, na superfície, uma incrível história fantástica sobre a relação de duas irmãs com espíritos da floresta. A camada interpretativa que mais me agradava era a dos laços familiares, mas minha última visita à obra me fez ver com uma clareza quase mágica um discurso sobre o otimismo (é impressionante como as ideias às vezes se assemelham aos espíritos da floresta: por vezes querem ser vistas, por vezes se escondem como se nunca tivessem existido). O otimismo do qual falo, no entanto, não diz respeito ao otimismo cego do Cândido de Voltaire ou o otimismo comercializável dos coaches. Trata-se de uma forma mais sincera e inocente de ver o copo como meio cheio, sem esquecer que ele também está meio vazio. A inocência da criança que ignora o conceito de melhor dos mundos possíveis não tem a ver com a de quem ignora os problemas em prol de um objetivo talvez inalcançável.

Atenção! A partir daqui, a crítica pode conter spoilers.

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Mudanças

Os personagens de Hayao Miyazaki muitas vezes são apresentados em momentos de extrema mudança, como o Príncipe Ashitaka que se vê obrigado a abandonar o vilarejo por causa de uma maldição que toma conta do seu corpo em Princesa Mononoke (1997); ou Chihiro, que abruptamente perde os pais e precisa cuidar de si em um mundo repleto de espíritos em A Viagem de Chihiro(2001). Em Meu Amigo Totoro, Satsuki e Mei já entram em cena em meio a uma mudança.

Todos os vestígios imagéticos apontam para uma situação complicada: elas estão sob os móveis na carroceria de um carro (chegando a se esconder de uma pessoa que pensam ser um policial), a casa parece que vai desabar a qualquer momento e não demora para que comecem a encontrar aparições estranhas no novo lar, como se cada descoberta fosse uma pior que a outra. Somado a isso, o background da história é um Japão rural pós-guerra e a mãe das meninas está internada no hospital — o que, inclusive, é uma referência à vida de Miyazaki, que se viu afastado da mãe que precisou ser internada em um hospital por ter contraído tuberculose.

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A cada “desgraça”, contraintuitivamente as irmãs e o pai reagem sempre de uma forma positiva às situações. A veracidade das reações, para que não soem falsas, depende imensamente do timing da animação: há, quase sempre, uma pausa que indica a preocupação dos personagens e o reconhecimento de que a situação deles não é a ideal. Esses momentos, às vezes brevíssimos, nos fazem compreender que eles celebram o otimismo de quem reconhece ter o melhor possível e que, se não lidar com o que tem com alegria, a tristeza será uma companheira constante.

Fantasia e imaginação

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Não é difícil entender Totoro e demais criaturas como apenas uma bengala emocional, fruto da imaginação das crianças para colorir uma realidade muito dura. Não deixa de ser um caminho válido de interpretação, mas, particularmente, acredito que empobrece muito o filme que não nos dá indícios suficientes para concluir que é pura criação imaginativa. Há uma ambiguidade na narrativa e acredito que vale a pena se deixar levar por ela, caso contrário poderemos acabar nos questionando se as crianças realmente sobreviveram perdidas à noite na mata que circunda o vilarejo e que certamente oferece perigos aos pequenos, sobretudo Mei.

Deposito meus votos na existência das criaturas como forma de dialogar com o ambiente que está ao nosso redor. É importante lembrar que o novo lar da família de Mei e Satsuki estava sendo habitado por espíritos antes da chegada deles. Em momento algum os espíritos invadem o espaço da família e, no caso inverso, permitem que as crianças explorem seu mundo. A relação de respeito e confiança entre as crianças e os espíritos é muito mais do que apenas imaginar criaturas fofas e gigantes, é sobre tentativas de compreensão e relação com o mundo, em que a felicidade não é um ponto futuro, mas uma construção constante a partir de qualquer detalhe.

Outro ponto que me agrada muito é a tácita democracia do local. E não me refiro a um sistema político de governo, mas a algo mais palpável: relações de igualdade. Todos os personagens, incluindo os espíritos, parecem formar uma grande comunidade familiar, em que todos se ajudam e todos estão dispostos a fazer o possível para deixar o próximo bem. Kanta é o exemplo perfeito disso: por ser uma criança do interior, ele não sabe lidar muito bem com aquelas meninas educadas que acabaram de vir de Tóquio, mas está sempre fazendo o possível para ajudá-las. Mesmo que fique excessivamente constrangido, a solidariedade é mais importante, como podemos ver na sequência em que ele empresta o guarda-chuva para as irmãs.

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O guarda-chuva, inclusive, sendo um objeto que visa proteger quem o utiliza, volta a aparecer no momento em que Totoro parece cuidar das irmãs na parada de ônibus. O cuidado é retribuído por Satsuki, que dá um dos guarda-chuvas para Totoro, que, assim como as irmãs, encontra diversão nas pequenas coisas cotidianas (as gotas de chuva maiores, que caem das árvores e fazem um som diferente no guarda-chuva).

Meu Amigo Totoro parece ser um eterno convite ao valor das coisas em um viés completamente oposto ao do capitalismo. A natureza pode ser linda e mágica, basta darmos abertura para isso. Escrevo escutando os pássaros e sentindo a brisa fresca da manhã. Não preciso esforçar minha imaginação para encontrar magia nisso, porque é belo por si próprio e, por ser cada dia mais ignorado, mais fantástico se torna, cada vez mais como um fantasma e menos como um espírito. Totoro é, também, uma representação de abundância da natureza e, para o espectador contemporâneo, grita como um alerta, como algo que pode ser perdido a qualquer momento. Myiazaki está nos dizendo há muito tempo que estamos indo pelo caminho errado.

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*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Canaltech