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Crítica | A Viagem de Chihiro é uma jornada de autorreflexão

Por| 13 de Março de 2020 às 12h13

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Studio Ghibli
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Lançado em 2001, A Viagem de Chihiro (agora disponível no catálogo da Netflix) se tornou um marco não só das produções do Studio Ghibli, mas da animação japonesa e mundial como um todo. Além da qualidade técnica e da história extremamente simbólica e sensível, o filme foi escrito, dirigido e desenhado pelo mestre Hayao Miyazaki, que ainda acompanhou de perto todo o processo de animação.

Pessoalmente, vi o filme em diferentes etapas da minha vida: na minha adolescência, quando estreou, e eu era apenas uma fã das animações japonesas (sim, uma otaku); posteriormente, quando já estudante de cinema e pude atentar muito mais para as qualidades técnicas da obra; e, agora, quando precisei escrever este texto e todas as metáforas pareciam surgir com uma obviedade não experimentada por mim nas outras ocasiões. Quando digo “obviedade”, no entanto, refiro-me apenas a conexões que criei com os conhecimentos que tenho hoje, afinal pouca coisa é realmente óbvia nos filmes de Miyazaki e cada espectador tem seu próprio conjunto de experiências e conhecimentos.

Uma breve pesquisa na internet mostra diversas teorias sobre o filme e acho válido comentar que algumas delas são falsas, como a informação de que o filme teria recebido uma classificação indicativa de 16 anos no Japão, quando na verdade recebeu classificação livre. Há certamente a barreira da linguagem: qualquer filme que chegue até nós legendado ou dublado corre o risco de não ter suas referências compreendidas por um espectador de uma cultura completamente diferente.

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Dessas teorias, duas são as mais comentadas: uma delas diz que A Viagem de Chihiro trabalha a questão da identidade, enquanto a outra aponta que a casa de banho é, na verdade um local de prostituição. A questão da identidade é mais facilmente compreendida, afinal Chihiro tem seu nome trocado para Sen e ambos os nomes estão no título original do filme. Já com relação à teoria sobre prostituição (infantil, inclusive), não esbarrei em fontes confiáveis que comprovassem as nomenclaturas utilizadas nas casas de banho do período Edo e que teriam sido absorvidas pelo filme. De qualquer modo, o personagem grande e branco que segue Chihiro assim que ela chega à casa de banho não deixa de ser bastante suspeito.

Atenção! A partir daqui a crítica pode conter spoilers.

Ensinamentos

A maioria dos filmes que visam atingir um grande público infantil, ainda que não sejam estritamente para crianças, tem apenas uma grande moral da história e, mesmo que ensinamentos distintos possam ser encontrados na trama, costumam ser menores e pontuais de modo a evitar que a trama fique confusa.

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Não tenho medo de dizer que Hayao Miyazaki seja provavelmente o maior contator de histórias da animação como um todo. Em poucos minutos, seus roteiros são capazes de fazer façanhas que só são facilmente encontradas em livros, cujas páginas possibilitam elucubrações muito mais extensas. A Viagem de Chihiro pode ser visto a partir de diversos ângulos, sendo possível extrair de cada personagem uma versão diferente da história, cada uma com seus próprios ensinamentos: Haku, Yubaba, Bebê e Sem Rosto não estão ali apenas para dar suporte à trajetória de Chihiro, pois, assim como na vida real, cada pessoa tem a sua própria história, cada um é um universo inteiro e distinto.

Isso é tão forte no filme que, embora não haja necessidade alguma de spin-offs, me peguei pensando nas histórias de vida desses personagens: como Haku, um rio, tomou a forma humana e se submeteu aos desejos da Yubaba? O que acontece com ele após Chihiro ir embora? Quem é exatamente Yubaba? Qual a sua relação com a irmã gêmea? De onde veio o Bebê e por que Yubaba o protege tanto? Como ficou a relação de ambos após os eventos do filme? O que é o Sem Rosto e porque ele se liga instantaneamente à Chihiro?

Todas essas são perguntas sem resposta no contexto do roteiro, mas de forma alguma chegam as ser pontas soltas. De modo geral, A Viagem de Chihiro lembra muito a estrutura de Alice no País das Maravilhas: uma menina chega a um mundo completamente estranho, cujas regras nada têm a ver com o local de onde veio, sendo obrigada a buscar seu próprio caminho de volta com a ajuda de seres que podem ser amigos ou inimigos. Assim como no livro de Lewis Carrol, A Viagem de Chihiro tem personagens incrivelmente cativantes, mas sobre os quais sabemos pouco ou nada.

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A Viagem de Chihiro não é apenas sobre uma menina que enfrenta dificuldades em um mundo de espíritos, deuses e outras criaturas: é sobre o universo de uma menina que esbarra com os universos de outras pessoas e sobre como lidar com esses choques. Muito além do simplório “o limite da minha liberdade é o início da liberdade do outro”, a animação mostra um período de amadurecimento (sendo por isso ligado ao gênero coming-of-age), em que Chihiro é forçada a enfrentar uma realidade dura sem ter os pais como suporte.

Sejamos Chihiro

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Assim, Chihiro traz para a trama elementos que são comuns a muitos, se não a todos os filmes do diretor: suas heroínas e heróis são pessoas que praticam o bem, generosas, educadas e cuidadosas com o seu lar (e com “lar” quero dizer o planeta). É difícil imaginar que os espectadores não se tornam pessoas melhores depois de um filme do Miyazaki.

As questões sobre identidade são bastante claras, mas não as entendo como uma metáfora sobre conservar a si mesmo como se é. Mudanças são inevitáveis e, como apontou Heráclito, não é possível entrar duas vezes no mesmo rio, afinal, na segunda vez, nem a pessoa nem o rio são os mesmos. A trajetória de Chihiro ao longo do filme não é egoísta, suas ações não são focadas em si (salvar seus pais e fugir daquele lugar). A identidade que merece ser preservada são suas qualidades. A Chihiro que saiu do túnel não é a mesma que entrou, ainda que elementos como a fala da mãe se repitam e tentem convencê-la de que nada está diferente.

A sociedade de consumo está escrachada no filme: os pais que comem e viram porcos (sim, porcos capitalistas) e a Yubaba que explora os trabalhadores, que, por sua vez, perdem a identidade na rotina de trabalhos exaustivos e se submetem à versão monstruosa do Sem Rosto em troca de ouro. Além disso, elementos do capitalismo ainda podem ser vistos no quarto do Bebê que chora quando não ganha o que quer (quantas crianças desnecessariamente mimadas você conhece?) e durante o banho do suposto espírito fedorento, que está repleto de entulhos como uma bicicleta e eletrodomésticos. Esse espírito do rio que está poluído, inclusive, é um elemento autobiográfico: ao limpar o rio da sua cidade, que estava extremamente poluído, Miyazaki precisou do auxílio de uma corda para remover uma bicicleta que encontrou dentro da água.

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Provavelmente assistirei Chihiro outras vezes e em cada uma delas poderei ter uma visão diferente. Talvez meu eu futuro tenha resolvido aprender japonês e talvez eu descubra coisas completamente novas em algum frame. Talvez meu eu do futuro seja mais feliz ou mais triste, mais ou menos bem-sucedido e tudo isso pode alterar minha visão do filme, porque, afinal, A Viagem de Chihiro é uma obra de possibilidades infinitas que se adequam a cada subjetividade.

Em tempos de apocalipse social, que é como sinto o mundo no qual estou inserida, meu universo encontra no universo de Chihiro uma missão pessoal: depois de assistir ao filme pretendo fazer crescer em mim a bondade e o respeito pelo próximo, quero me esforçar mais nas pequenas lutas ambientalistas diárias para que o mundo em que vivo se assemelhe novamente a uma paisagem desenhada por Miyazaki, quero inspirar e ser inspirada e entender que essa é uma forma pura de amor. Quanto aos porcos capitalistas, preciso respirar fundo e lembrar que nem todos eles merecem virar bacon e que, na verdade, os piores não são os porcos, mas sim aqueles que detêm o poder de nos transformar em porcos (aliás, alguém mais lembrou de A Revolução dos Bichos, de George Orwell?).