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Crítica | Eu Me Importo atira no alvo e acerta embaixo

Por| 23 de Fevereiro de 2021 às 10h50

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De repente, Eu Me Importo pode parecer uma realidade distópica, um universo paralelo, uma espécie de existência alternativa. A verdade é que o novo filme da Netflix se baseia em um contexto real que tem força para estranhar qualquer espectador não ciente dessa faceta das políticas sociais dos Estados Unidos. O roteirista e diretor J Blakeson (de O Desaparecimento de Alice Creed — filme de 2009), porém, indica que sabe bem onde está pisando. Pelo menos por um bom tempo.

A estrutura de I Care a Lot (título original) é quase que inteiramente pensada a partir do absurdo do Estado a serviço das empresas privadas. O tom de comédia, aqui, tenta expor a quão ridícula é toda a situação e, aos poucos, vai fermentando repulsa para com o trabalho da curadora Marla Grayson (Rosamund Pike). Que não é a única na engrenagem, esta que passa, também, pelo juiz Lomax (Isiah Whitlock Jr.) — incompetente e ingênuo em uma posição que não requer formação — e por cada personagem-parafuso que existe somente para manter o esquema funcionando.

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Atenção! Esta crítica pode conter spoilers sobre o filme!

Coragem, mas nem tanto 

É interessante como Blakeson arquiteta o filme, desenvolvendo uma sensação de maldade e, ao mesmo tempo, mantendo-se leve de alguma forma. Para tanto, a protagonista pode ser exagerada e minimalista simultaneamente. O diretor atesta que sabe bem como jogar com essa veia muito própria da atriz e constrói momentos que adicionam, exatamente, a indignação sem que a admiração por Pike seja perdida. Desde o início, quando ela recebe o primeiro veredicto do juiz Lomax e a direção explora com um close a transformação de sua seriedade em um levíssimo sorriso, entende-se que a protagonista é uma vilã da roda.

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Mas Marla não é a vilã de fato. O buraco é mais embaixo — ou mais em cima no caso. De todo modo, Blakeson não demonstra estar disposto a explorar a fundo esse universo e, por isso, mantém-se em seu próprio roteiro, sem buscar fomentar subtextos para além dos que são visíveis. Não dá para dizer que Eu Me Importo é um filme corajoso portanto, mas também pode não ser possível afirmar o contrário. Isso porque, mesmo não indo a fundo no sistema, é uma obra que expõe e tenta ridicularizar a situação.

Nesse ponto, cabe o exagero do envolvimento da máfia russa a partir de uma vítima potencialmente muito rentável. Nesse sentido, a inicialmente inofensiva Jennifer Peterson (Dianne Wiest) é protagonista de uma das cenas mais satisfatórias, quando avisa para Marla que ela vai se dar muito mal. Sob efeitos da medicação psiquiátrica, a cereja dá o recado e, por já ter sido plantada uma aversão ao trabalho da curadora, pode ser sentido um prazer, um entusiasmo por acreditar que a personagem de Pike está em perigo real.

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O diretor, até então, trata as sequências com uma pegada quase debochada, seja ao guiar as atuações ou ao inserir elementos quase nonsense em alguns momentos. Se o cinismo de Marla é paralelo ao do advogado Dean Ericson (Chris Messina), a autoconfiança de Jennifer ao rir da cuidadora é parte da segurança de um traficante de mulheres — o próprio filho (Peter Dinklage). Aliás, se a situação geral ganha contornos estranhos com a aparição do mafioso Roman Lunyov (Dinklage), tudo é ilustrado, pelo meio, com algumas cenas em câmera lenta que parecem dizer algo, mas dizem nada.

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O topo é além

Eis uma das maiores dificuldades de Blakeson: ao buscar fazer comédia com uma realidade no mínimo estranha, o diretor acaba investindo mais em formas que poderiam criar momentos de riso no lugar de procurar ser sarcástico. Eu Me Importo, dessa maneira, começa muito bem e perde muita força ao inserir a máfia e fazê-la ser incompetente no simples ato (para ela — a máfia) de dar fim a uma cuidadora.

Claro que a narração em off de Marla existe, a esse ponto, para justificar suas habilidades, que vão de uma perfeita golpista em um sistema existente a alguém capaz de ser um leão e transformar mafiosos em cordeiros. Poderia funcionar se o direcionamento, como dito, fosse sarcástico, se a direção tivesse talento para rir de si mesma e, com isso, deixasse aberta a ferida que é essa faceta das políticas sociais do seu país.

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Por felicidade, Pike é tão segura que traz ecos próprios da Amy de Garota Exemplar (de David Fincher, 2014) e, em um surto que, felizmente, pode trazer satisfação, tem um fim momentaneamente adequado. Isso porque Marla se vai por meio daquele que foi vítima da transformação de seriedade em levíssimo sorriso. Mas a realidade fica. Se o sorriso, que agora é escancarado e forçado, fica registrado — em close novamente —, no final das contas, não interessa muito o extermínio de quem se acha leão. Não é esse o caminho para que os cordeiros sejam livres e felizes. Porque o topo da cadeia é outro.

Eu Me Importo está disponível na Netflix.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Canaltech