Publicidade
Economize: canal oficial do CT Ofertas no WhatsApp Entrar

Crítica | Estou Pensando em Acabar com Tudo e o voltar-se sobre si mesmo

Por| 10 de Setembro de 2020 às 21h00

Link copiado!

Netflix
Netflix
Tudo sobre Netflix

Eu realmente amo muito o surgimento de filmes como Estou Pensando em Acabar com Tudo e, acredito, não fosse por plataformas como a Netflix, muito provavelmente esse seria mais um Charlie Kaufman destinado a ser ruminado por um pequeno grupo de entusiastas e intelectuais que tentam esmiuçar os pormenores dos seus dois outros filmes (como diretor), Sinédoque, Nova York e Anomalisa. O boca a boca acendeu a chama do “tentar entender” e a própria Netflix teve uma atitude extraordinária em seu Twitter ao não fechar o que foi deixado em aberto:

Nessa crítica, tentarei explicar o mínimo possível, já que não é intenção do filme, do diretor, do livro e mesmo do próprio autor do romance explicar o que está acontecendo. É preciso emancipar a nossa criatividade e preencher os espaços que o filme nos dá, não só pela história, mas por nós mesmos. Isso porque o roteiro não parece construído apenas para levar os personagens de um ponto a outro, mas para nos conduzir por uma viagem reflexiva que não substitui o trabalho de um psicólogo, mas nos guia com cuidado e responsabilidade por uma série de incertezas que, em uma medida ou outra, permeiam nossas vidas.

Continua após a publicidade

Atenção! A crítica abaixo pode conter spoilers.

O que é?

Não é. Estamos bastante acostumados, talvez até mesmo mimados com narrativas que nos entregam tudo e, geralmente muito intensas, dificultam a reflexão por nos chamarem a atenção para as ações e diálogos o tempo todo. E não há nada de errado nisso, são abordagens diferentes e com intuitos diferentes. Embora possamos pensar qualquer coisa com qualquer filme — já que a experiência do espectador depende dos conhecimentos, experiências, humores e disposição da pessoa que assiste —, alguns filmes são mais propícios à reflexão que outros.

Continua após a publicidade

O foco no relacionamento, gerado pela narrativa da mulher que vai conhecer os pais do namorado é significativa sim e pode render muitas interpretações sobre nossos próprios relacionamentos, como agimos neles, o que pensamos sobre as pessoas e as dúvidas que desenvolvemos, mas pode ser muito mais do que isso também. Isso acontece porque a genialidade de Estou Pensando em Acabar com Tudo tem a ver com o formato do filme, um guia filosófico e psicológico de reflexão no qual importa muito mais a sua interpretação do que aquilo que supostamente o(s) autor(es) quis(eram) colocar como subtexto.

Obviamente Kaufman tem suas próprias intenções e isso é notável no modo como ele conduz as imagens e a interação destas com o texto. Mas, mesmo nisso, ele é libertador e, para mim, a liberdade começou na vinheta da produtora Projective Testing Service, que traz justamente o Efeito Kuleshov. Em resumo, essa experiência nos diz que dois planos independentes, quando ligados, criem significações novas, que são dadas pelo expectador: uma mesma imagem de um homem olhando em direção a câmera tem seu significado alterado quando ao lado de uma imagem de um prato de comida, de um cadáver ou de uma mulher.

Continua após a publicidade

Estou Pensando em Acabar com Tudo não só utiliza isso na montagem das imagens, como o tempo todo cria expectativas nos diálogos só para, em seguida, inserir uma reflexão que está na contramão do que esperávamos. A personagem de Jessie Buckley nos guia por uma viagem mental tão plural quanto a nossa psique e mostra muitas das dimensões dos nossos pensamentos.

Além do óbvio

Se, por um lado, a personagem de Jessie Buckley é bastante decidida ao dizer que quer acabar com tudo, ela também reconhece que entrou de cabeça em um relacionamento complexo. Relacionar-se é um ato de responsabilidade, empatia e tolerância, e isso não diz respeito somente aos relacionamentos amorosos, embora seja possível também uma interpretação especificamente voltada para isso a partir do filme.

Continua após a publicidade

O modo como vemos os idosos (com as interpretações arrebatadoras de Toni Collette e David Thewlis), o namorado, as funcionárias da sorveteria, o zelador e até mesmo a própria protagonista tem muito mais a ver com quem somos do que com a alma do filme (algo que, acredito, nem sequer existe). Quem você enxerga quando vê os pais do Jake? E quando os vê mais velhos? Quem é Jake na sua vida?

Esse road movie surrealista não foi feito para ser fácil, porque nenhuma jornada de autoconhecimento é. Há, ainda, reflexões sobre o papel e a potência da arte, sobre as vidas medíocres que aceitamos viver e sobre o falso. Parece haver muito de Verdades e Mentiras (1973, Orson Welles) em Estou Pensando em Acabar com Tudo: a mentira cinematográfica é criada e destruída a todo momento pelo filme que se questiona enquanto filme e constantemente somos tragados pela ideia de compreender a narrativa só para, em seguida, sermos arremessados para fora da história por algo clara e propositalmente inverossímil, como o cachorro que não para de se sacodir. Esse movimento lembra muito também a cena do teatro em Cidade dos Sonhos (2001, David Lynch), quando somos alertados de que tudo é uma mentira e mesmo assim acreditamos que a mulher no palco está cantando de fato. Não é a toa que a cena final de Estou Pensando em Acabar com Tudo é um grande teatro.

Continua após a publicidade

Para entender Estou Pensando em Acabar com Tudo é necessário voltar-se para si, pensar sobre o que você está pensando em quanto vê o filme (que também pode ser visto sem reflexão alguma). A regra é se livrar das regras. Qual foi a última vez que você se deu a liberdade de tirar o que você quisesse de um filme?

Fazer um filme que se recusa a ser compreendido em uma época que preza pela imersão e pelo controle do espectador é, além de um ato de resistência em si, dar as ferramentas de libertação do espectador: você pode entender o que você quiser a partir de uma obra de arte.

Estou Pensando em Acabar com Tudo pode ser assistido no catálogo da Netflix.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Canaltech