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Crítica | A Good Woman is Hard to Find e o homem bom como limite do impossível

Por| 04 de Junho de 2020 às 09h19

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Frakas Productions
Frakas Productions

Um bom filme, às vezes, não precisa ter um roteiro complexo. O texto pode ser até mesmo simples demais, basear-se em clichês para que a história funcione ou para abraçar o próprio gênero. A questão maior é como a direção vai lidar com os elementos propostos, como será construída a estética, por meio de qual estilo. Na música, de repente, seria como pegar a letra para uma composição e decidir entre compor um rock e uma bossa-nova, um funk e um forró… Em um filme como A Good Woman is Hard to Find ("É difícil encontrar uma boa mulher", em tradução livre, já que ainda não há título nacional), pode ficar a sensação de que o casamento entre roteiro e direção não foi muito feliz. E o maior problema pode ser na indefinição do estilo.

Atenção! Esta crítica contém spoilers sobre o filme!

Muito além da ficção

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A história é bem simples: trata de Sarah (Sarah Bolger), uma jovem viúva mãe de duas crianças pequenas que tem a casa invadida por um traficante de drogas. O homem (interpretado por Andrew Simpson), que decide esconder seus produtos na casa da protagonista, parece desprezar completamente a existência da proprietária, como se sua aparente fragilidade fosse motivo para sua sobreposição.

A direção de Abner Pastoll (de Road Games – filme de 2015) é consciente do subtexto principal do roteiro de Ronan Blaney (de Don't Go), que traz à tona um sexismo longe de ser velado. Aliás, a condução de Pastoll potencializa esses elementos: se o texto de Blaney expõe cada homem do filme como uma ameaça – seja de assédio, injúria, desconfiança ou até de morte –, o diretor ressalta ao máximo esses ingredientes. O mundo de Sarah, afinal, revela uma questão que vai muito além da ficção.

Assim, de Tito (o invasor) aos policiais que vasculham a casa, não existe homem bom em A Good Woman is Hard to Find, o que torna o título, de algum modo, elegantemente irônico. Essa abordagem de Pastoll é clara e, pouco a pouco, eleva a tensão do filme de forma competente. Nesse sentido, não há perda de tempo na idealização estética. Nada parece uma invenção provocativa. É tudo muito direto, sem enrolações, levando a história para frente sem muita demora. Há um certo flerte com o cinema mais genérico de ação, especialmente parte do americano, no qual as atitudes e as decisões dos personagens parecem escolher os planos de maneira, à primeira vista, natural.

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Esse tipo de intercalação de imagens encontra um embate justamente na vida da protagonista, que é cheia de barreiras – e praticamente todas provocadas por homens. A princípio, sua existência depende mais de atitudes externas masculinas e de sua experiência de mundo do que de sua própria vontade de viver, esta que foi aparentemente sufocada. A sequência em que, utilizando de autodefesa, ela esfaqueia seu estuprador e acaba por ficar completamente perdida – sem saber o que fazer –, quando seria lógico fazer a denúncia, pode ser revoltante. Por que ela não denuncia?! Precisava daquilo tudo?!

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Em seguida, com a chegada dos policiais (que parecem se multiplicar por meio de um espelho), talvez seja perceptível que a polícia, dominada por homens ali, dificilmente acreditaria nela, que é constantemente abordada como prostituta – sendo isso, na Irlanda do Norte, um ato considerado criminoso, tratado como ofensa sexual dentro da Lei de Policiamento e Crime de 2009.

Não que uma constatação legal e local tenha força sobre o todo do filme, mas é um ponto que agrava (se é que isso é possível) cultural e moralmente o que é mostrado em A Good Woman is Hard to Find. Se já era sombria a situação de Sarah, com um meio masculino a consumindo, há a exploração de que aqueles homens sabem que estão sendo criminosos e têm a segurança de que nada será feito contra eles. Do funcionário no mercado (interpretado por Sean Sloan) ao chefe do tráfico (interpretado por Edward Hogg), cada homem ali é, de fato, criminoso.

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A exceção é Ben (Rudy Doherty), o filho de Sarah, que, mesmo assim, não diz mais do que uma palavra durante todo o filme (traumatizado por um crime cometido por... um homem). Quando diz, é completamente inofensivo – como criança que é. Além de trazer um lapso de felicidade para sua mãe – sendo a primeira e única figura masculina a ter esse poder durante os 97 minutos –, Ben parece impulsionar Sarah a uma redenção.

O limite do impossível

Por outro lado, o estilo de Pastoll pode soterrar qualquer simbolismo e acabar por deixar somente a camada mais superficial à vista. Ao mesmo tempo, a composição de Matthew Pusti constantemente evoca um sentido surreal à história, aproximando A Good Woman is Hard to Find de um inexistente surrealismo, como se o compositor quisesse construir uma experiência sensorial para um filme essencialmente realista na abordagem da direção. Esse choque entre a construção da direção e a emulação fake do trabalho de Jóhann Jóhannsson em Mandy: Sede de Vingança (de Panos Cosmatos, 2018) – esse sim, essencialmente surreal – à qual se propõe Pusti pode destituir o resultado de identidade.

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Toda a construção de Pastoll acaba por ser enfraquecida pelo trabalho sonoro. O filme, que poderia ser significante tanto enquanto cinema quanto em sua abordagem do tema – especialmente do seu subtexto mais claro –, parece sucumbir a si mesmo. Não é, no final das contas, um trabalho ruim, mas talvez precisasse ter sua unidade melhor pensada. Felizmente, Sarah se sobressai (e o trabalho de Bolger é excelente para isso) e, quando toma as rédeas da vida, começa a devolver na mesma moeda: iniciando com uma ameaça de crime sexual a Jimmy (o funcionário do mercado). Aqui, logo ela é completada por uma ofensa, também de caráter sexual, dita pela pequena Lucy (Macie McCauley), sua filha, que parece começar a internalizar a verdade irônica do título: se é difícil encontrar uma boa mulher, um homem deve ser o limite do impossível.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Canaltech