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Crítica | Mandy: Sede de Vingança ou "porque o amor não é tão óbvio"

Por| 05 de Agosto de 2019 às 11h57

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Universal Pictures
Universal Pictures

Uma vez, enquanto ministrava uma aula de cinema para crianças, estávamos fazendo um exercício sobre as cores: os prováveis significados delas em nossa cultura ocidental, o quanto e como elas podem moldar o que sentimos ao assistir a um filme... Nessa atividade, que consistia em pintar um determinado sentimento de forma abstrata, um dos grupos – encarregado de pintar o amor – foi muito além do esperado. Após preencher o desenho sem forma com todas as cores que estavam disponíveis, pedi que explicassem o que haviam feito e o motivo de terem fugido do vermelho. A resposta que uma pequena me deu, simples e ao mesmo tempo de uma profundidade que a vida adulta parece esquecer, marcou minha forma de enxergar o mundo para sempre: “Porque o amor não é tão óbvio.”

Cuidado! Daqui em diante a crítica pode conter spoilers!

Um romance para além da morte

Talvez seja estranho falar de amor em uma crítica sobre um filme que, no final das contas, é sedimentado em uma estética quase que alucinógena e retalhado por uma vingança sanguinolenta. Por outro lado, não é à toa que o diretor e corroteirista Panos Cosmatos (de Além do Arco-Íris Negro, 2010)  investe metade do filme na relação entre Red (Nicolas Cage) e Mandy (Andrea Riseborough). Apresentando o casal de uma maneira crua e, ao mesmo tempo, quase espiritual, Cosmatos liga esses protagonistas sem necessitar de qualquer exposição.

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É um fato que Red, cansado após um dia de trabalho braçal, chega em casa visivelmente e não hesita em brincar com Mandy, conversar com ela, interessar-se por sua vida e, sobretudo, admirar o que ela tem feito. A expressão de Cage, a propósito, enquanto se mantém em sua personagem e observa atento o desenho feito por Mandy, por cima dos ombros dela (sem que ela precise ver seu rosto), é de uma delicadeza fascinante. O diretor, interessado nessa expressão, faz a cena se estender um pouco mais do que normalmente aconteceria. Mandy: Sede de Vingança (que está disponível no Telecine Play) é, poeticamente, sobre isso: sobre um homem que admira de verdade e gratuitamente, doa-se inteiramente e ama para além do que a morte pode fazer.

Partindo desse espectro romântico, o ponto crucial que impulsiona Jeremiah (Linus Roache) a descartar Mandy é a percepção dele de que não conseguiu conquistar a atenção que procurava nela. Nu (de uma nudez frontal muito natural), ele, do alto de sua loucura de extremismo religioso, percebe que não terá nela uma discípula ou uma submissa. E ela, que havia dito a Red sobre a sua preferência pelo planeta Júpiter (nome também do maior dos deuses romanos), assina o início de uma tempestade. Se no maior planeta do sistema solar há um olho de furacão com um diâmetro que engoliria a Terra com facilidade, é na morte que ela (Mandy) assume a sua potência como tal. Destruindo a tudo e a todos a partir das mãos da vingança, Mandy: Sede de Vingança parece tratar, para além do amor, de libertação. Assim, Saturno, como o deus romano (e sendo o planeta preferido de Red), assume a segunda metade do filme com sua foice característica.

Libertação e referências

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É interessante perceber como nada para Cosmatos é em vão. A certo ponto, por exemplo, a sobreposição dos rostos de Jeremiah e Mandy parece afirmar que, apesar de tudo, há uma igualdade entre eles e talvez seja a semelhança do equilíbrio, o yin (o princípio feminino) e o yang (o princípio masculino) misturando-se até o limite da percepção da divisa; o bem e o mal equilibrando-se em uma imagem perturbadora. Do mesmo modo, os semimonstros da seita diferem-se da jovem Irmã Lucy (Line Pillet) por serem o fim de um ciclo completo: o ciclo de uma lavagem cerebral e espiritual. Enquanto eles são a personificação do que não tem mais volta, Lucy é o reflexo, desde a sua primeira aparição, da inocência, daquilo que ainda pode ser recuperado. Red, que afogou cruelmente o Irmão Swan (Ned Dennehy) em suas próprias palavras às vistas dela (Lucy), poupa-a. Em um misto de libertação (justamente) e medo do que há por vir, ela deixa escorrer uma lágrima.

A brutalidade de Mandy: Sede de Vingança, que, em uma primeira vista, pode ser considerada como exagerada, tende a receber uma visão menos taxativa durante a descoberta de suas camadas. Não há morte, aqui, que seja descomprometida com o que o filme pretende expor. Há espaço, dessa forma, para referências pontuais do cinema de terror dos anos 1980 (o filme se passa em 1983). De uma vestimenta espinhosa à la cenobita de Hellraiser: Renascido do Inferno (de Clive Barker, 1987) – com direito à menção sobre perversão sexual que parece ter saído da mente do próprio Barker (vide o pênis que, na verdade, é uma faca) – à citação de que eles (os semimonstros) são adoradores da dor (sendo a dimensão dos cenobitas uma realidade de dor e tortura), trazendo, ainda, a gangue de motoqueiros de Mad Max 2: A Caçada Continua (de George Miller, 1981) para o terror.

E Cosmatos não se perde em suas referências. Transformando tudo ao seu estilo – uma espécie de terror exploitation poem –, o diretor ainda remete a outros clássicos do gênero, como Uma Noite Alucinante 2 (de Sam Raimi, 1987), O Massacre da Serra-Elétrica 2 (de Tobe Hooper, 1986), Raça das Trevas (de Barker, 1990) e, especialmente em sua morte final, Sexta-Feira 13, Parte 3 (de Steve Miner, 1982).

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Essa última carrega uma simbologia que pode causar muitas interpretações: Ao matar o homem causador de tudo, o líder que dizia estar em contato com Deus – esmagando o seu crânio com as próprias mãos como Jason o faria –, Red está exterminando o sujeito que tinha como virtude a manipulação mental de outros. Se o Irmão Swan morreu pela boca por não se calar, Jeremiah encontra seu fim pela compressão da cabeça por insistir em manipular... até o nível mais humilhante para o ser machista e misógino que ele é: “Eu chupo você! Eu posso chupar você! É isso que você quer?”

Ambos morreriam de qualquer forma, tamanha a força do furacão jupteriano causado pela assassinato brutal de Mandy e dada a sede de vingança saturnina de Red, mas, em Mandy: Sede de Vingança, os fins justificam o início: Nada como iniciar situando que o casal tão unido reside nas proximidades de Crystal Lake e finalizar a vingança pela dissolução desse amor com um golpe eternizado por Jason Voorhees (morto por afogamento no Acampamento Crystal Lake).

No fim de tudo

Com Cage tendo liberdade para expressões convenientemente exageradas – algumas que já se tornaram memes –, pode ficar também a impressão de que dificilmente o filme funcionaria da mesma maneira com outro ator ou, ao menos, com um ator de menor gabarito. É certo que, por conta de dívidas devido à sua personalidade extravagante, Cage tem aceitado papéis em todo tipo de filme (e a maioria é de produções no mínimo duvidosas), mas também é fato que há um peso empático no ator – que foi indicado ao Oscar pelo excepcional Adaptação (de Spike Jonze, 2002) e venceu por Despedida em Las Vegas (de Mike Figgis, 1995) – difícil de encontrar em outros.

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De quebra, enquanto a fotografia de Benjamin Loeb (de Hello Destroyer) constrói toda a atmosfera sensorial do poema de exploração do terror proposto por Cosmatos, é a trilha sonora hipnótica do saudoso Jóhann Jóhannsson (de A Chegada) que cede toda uma camada extra de percepção. Passando por sintetizadores que tendem a localizar o filme em sua época pretendida (os anos 1980, como dito), por guitarras que parecem saídas de bandas de doom metal – subgênero que influenciou os primeiros discos da Black Sabbath (Mandy veste uma camiseta da banda em um trecho do filme) – e por uma bateria cirúrgica que soa em momentos bem específicos (como a chegada gradativa da morte, enfim, de Jeremiah), o compositor faz com que seu trabalho seja um dos grandes motivos para que Mandy: Sede de Vingança funcione.

No fim de tudo, retornando de sua caçada, Red sorri ensandecido ao, ilusoriamente, enxergar Mandy ao seu lado. Um homem que, ao admirar de verdade e gratuitamente, doou-se literalmente por inteiro e, em sua consciência já retorcida por tanto ódio despendido, foi até aonde a morte o separou de sua amada e a trouxe de volta. Dentro de sua mente, claro, mas, como diria a sabedoria de uma criança, “porque o amor não é tão óbvio.”

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Mandy: Sede de Vingança pode ser assistido pelos assinantes do Telecine Play.