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Crítica | Adoráveis Mulheres é um legado sobre o que é ser mulher

Por| 30 de Janeiro de 2020 às 12h33

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Sony Pictures Entertainment
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Não existe um ponto de vista universal sobre o que quer que seja. A depender de minha experiência de mundo, eu posso buscar ter voz e até alguma razão sobre determinados temas. De todo modo, será a minha voz específica e a razão que foi alcançada por aquilo que conheço que guiarão meus pensamentos e construirão a minha visão. Eu jamais chegaria à mesma resposta de alguém com renda 10 vezes superior à minha sobre, por exemplo, como é viver em minha cidade. Isso, aliás, é um resumo mínimo sobre o quanto alguns pontos de vista podem ser socialmente e historicamente mais valorizados do que outros e sobre como é essencial a existência de diversidade nas esferas de poder que regem a sociedade. Como homem – e aqui independe minha orientação sexual e minha identidade de gênero –, eu não tenho como comentar sobre a experiência de ser mulher.

Cuidado! A crítica pode conter spoilers!

A pedra filosofal...

A incapacidade de um homem se posicionar como mulher, inclusive, é motor do trabalho da roteirista e diretora Greta Gerwig (de Lady Bird: A Hora de Voar, 2017). Ela não é agressiva em sua abordagem; talvez seja até branda ao construir com alguma leveza – e com um olhar romântico – as figuras masculinas de pleno século XIX. “Moral não vende hoje em dia.”, diz Mr. Dashwood (Tracy Letts) para Jo (Saoirse Ronan) de maneira quase paterna – aliás, todas as discussões entre os dois (inclusive quando ao negociarem valores) se dá sem qualquer tipo de violência que não seja a da demonstração de um mundo espontaneamente tirano para as mulheres.

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É assim que, ao provocar uma discussão inicialmente sobre o mercado editorial de mais ou menos 160 anos atrás, as palavras mansas do editor encontram eco, na verdade, em nosso tempo. Um exemplo direto e na mesma área de Jo é o de Joanne Rowling, que por sugestão de seu editor (Barry Cunningham) precisou abreviar seu nome para que os leitores não percebessem, em uma primeira vista, que os livros eram escritos por uma mulher. Adicionando o K, de Kathleen (sua avó paterna), J.K. Rowling driblou um mercado que, em 1997 – ano da primeira publicação de Harry Potter e a Pedra Filosofal –, ainda era (como ainda é) cruel.

A vida que agride e o romantismo

Mas a inteligência do trabalho de Gerwig vai muito além de traçar um panorama do mercado editorial e dizer sobre o quanto a história é, infelizmente, modificada tão lentamente – especialmente naquilo que mais necessita de mudanças. A diretora, que já havia demonstrado sua inquietação e sua empatia em relação à adolescência com o citado Lady Bird: A Hora de Voar, concebe quase que um tratado sobre o que é amadurecer. Para isso, ela conta com o trabalho de montagem de Nick Houy (parceiro também no filme anterior), que vai muito além de delinear a história. Houy intercala o auge da juventude das quatro irmãs com o início da vida adulta destas em um processo que, se inicialmente pode parecer confuso, aos poucos ganha corpo e motivações.

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Nesse sentido, enquanto os tempos intercalados são diferenciados de maneira mínima nas primeiras vezes – a paleta de cores mais viva e aquecida da felicidade na juventude e o esfriamento estético que chega com os primeiros baques do mundo adulto –, a partir da morte Beth (Eliza Scanlen) tudo parece destoar completamente. Isso é salientado justamente pela montagem, que resolveu aproximar as duas vezes em que Jo cuida da irmã doente: se em um primeiro momento a personagem de Ronan demonstra uma esperança quase contagiante ao acordar e correr à procura da irmã, que, finalmente, saíra da cama, na sequência Jo parece menos esperançosa e mais desacreditada da vida. Nessa segunda vez, ao descer as escadas de forma pesarosa, a personagem não só fomenta a perda de ímpeto que o tempo confere, mas também a desesperança de uma vida que agride.

É interessante perceber, por tudo isso – e por mais que tudo gire em torno das personagens femininas –, como os homens são coadjuvantes efetivos desse amadurecimento e como esse processo é, de algum jeito, sofrido. Gerwig, por esse lado, não está interessada em julgamentos rasos: ela assume seu protagonismo enquanto mulher e enquanto roteirista e diretora para ceder diálogo. Inclusive, a música de Alexandre Desplat busca essa conversa ao não pender para qualquer vilanização de quem quer que seja: o compositor, nessa lógica, faz a ilustração sonora da unidade pretendida pela direção, evocando o período romântico e encontrando inspiração nas músicas tocadas por Beth ao piano (que vão da fase romântica de Beethoven a Schumann – compositor do romantismo).

Pode ser importante, nessa perspectiva, notar o papel positivo de Mr. Laurence (Chris Cooper), especialmente no desenvolvimento de Beth. Ele, mesmo que ratifique a função de um homem rico que conquista certo carinho e admiração por meio de bens materiais, é doce em sua nostalgia e cavalheiro em suas atitudes – algo que Cooper interpreta com uma delicadeza enorme. De todo modo, seu cavalheirismo está sempre ligado a um benevolente machismo estrutural, algo que Gerwig deixa à mercê das entrelinhas.

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Em contrapartida, John (James Norton) talvez seja a confirmação da relação amorosa mais amigável que poderia ser alcançada por uma mulher na época retratada, sendo alguém que simultaneamente se doa para Meg (Emma Watson) e a faz se sentir culpada sem dizer uma palavra. Ele mantém a sua relação como o provedor e ela como a mulher que quer (ela fala, em certo momento, da sua vontade de ter uma família e cuidar da casa) e aceita estar submissa à existência dele. Além disso, o próprio pai das quatro irmãs refere-se a elas no diminutivo. Little women (mulherzinhas em tradução livre – sendo o título original), que pode ser visto como carinhoso ou – mais revelador e, de repente, não-intencionalmente da parte dele – uma forma de inferiorizar as filhas por serem mulheres.

Legado ou lembrança

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No final das contas, Jo é quem destoa (para o horror de Tia March – Meryl Streep –, quase sempre nas sombras pela direção de fotografia de Yorick Le Saux, de Personal Shopper). Quando o tal editor diz para ela (Jo) que sua personagem precisa casar-se ou morrer para ser vendível, o peso dado para essas opções é o mesmo. Jo é a protagonista afinal. Casar ou morrer são planos que interferem em seu desejo de liberdade. Gerwig, com a intenção de atualizar as possibilidades de interpretação, não restringe a personagem de Ronan a essa dicotomia. Não importa, nos minutos finais, se houve amor por Laurie (Timothée Chalamet) ou se há esse amor por Friedrich (Louis Garrel). Optando por deixar o público decidir o melhor final para si, ela (Gerwig) demonstra sua grandeza em entender o mundo ao apostar que seu filme tem o poder de causar discussão. E, longe de ter um debate raso, Adoráveis Mulheres desafia qualquer percepção de mundo limitada sobre o papel da mulher. Papel que, afinal, cabe (ou precisa caber) somente a elas – que, assim, como Jo, podem (ou devem poder) ser o que quiserem e contra a vontade (ou não) de quem quer que seja.

E nós, igualmente, podemos encarar o final como quisermos. Gerwig nos dá liberdade sem que, para isso, precise limitar a nossa experiência enquanto espectadores. Igualmente, ela não limita a própria esperança em um mundo que necessita de equidade, fazendo do seu filme – mesmo sendo a sétima adaptação do livro de Louisa May Alcott – uma espécie de legado ou, em escala menor, uma lembrança sobre o que é ser mulher.

Mas é algo que eu posso apenas supor.