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Crítica | A Caçada traz o elitismo cultural contra a destruição da cultura

Por| Editado por Jones Oliveira | 20 de Junho de 2020 às 10h00

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Universal Pictures
Universal Pictures

George Orwell tem uma obra literária marcada pelo humor ácido e uma consciência profunda das injustiças sociais. Pode ser comum, portanto, encontrar referências diretas ou indiretas aos seus trabalhos nos filmes, além de, claro, já terem sido realizadas adaptações de alguns dos seus livros. Inclusive, podem ser criados paralelos com a obra de Orwell a partir de filmes que nem tinham a proposta de fazer esse flerte, porque a força do escritor é tão grande que é possível que já exista uma espécie de inconsciente coletivo a respeito de suas criações.

Por outro lado, é sempre bem complicado fazer citações diretas da obra de um autor de peso sem cair em um perigoso encantamento. E é sob a sedução de A Revolução dos Bichos (de Orwell) que os diálogos, as situações, os jogos sociais e praticamente todo o desenvolvimento de A Caçada se aninha. E tudo bem quanto a isso. O problema é quando se busca refúgio e justificativas em trabalhos externos.

Atenção! Esta crítica contém spoilers sobre o filme!

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Caviar versus teorias da conspiração

Existe, sem dúvidas, uma proposta válida e até bem desenvolvida no roteiro do estreante no cinema Nick Cuse e de Damon Lindelof (de Guerra Mundial Z). A ideia de expor uma caçada promovida por uma elite arrogante que posa de certa por querer matar pessoas confirmadamente prejudiciais (pelos moldes dessa tal elite) à sociedade não é nova – é, inclusive, um dos pilares das séries Dexter e O Justiceiro –, mas a formalidade com a qual o diretor Craig Zobel (de Os Últimos na Terra – filme de 2015) conduz o texto cede uma relevância quase de novidade. Pode parecer, em certos momentos, estar se assistindo a algo novo de fato.

Esse mesmo tom formal, de uma consciência perfeccionista na decupagem, ganha força já na introdução, com uma situação inusitada dentro de um avião se desenvolvendo e Zobel, cirurgicamente, sem se entregar a qualquer exagero inventivo. É como se aquilo estivesse acontecendo porque precisava acontecer e nada mais. Se é surpresa para os passageiros – cúmplices daquilo tudo –, para o diretor é somente uma apresentação.

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Esse tom quase esnobe da direção consegue surpreender sem buscar motivações profundas para tudo aquilo. Existe uma displicência calculada até mesmo no trabalho de casting de Terri Taylor (de O Homem Invisível, A Ilha da Fantasia e Nós), que escalou, por exemplo, uma atriz como Emma Roberts justamente como adereço da falta de importância daquelas pessoas – o que é confirmado pela morte rápida e repentina de Yoga Pants. Zobel, aparentemente, planejou para que não exista qualquer apego do público para com os personagens, conduzindo até mesmo sua protagonista com distância afetiva.

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Ao mesmo tempo, o diretor parece querer direcionar a percepção dos fatos para um descompromisso, para uma desimportância emocional. Para tanto, flerta com situações de filmes B, como a personagem de Sylvia Grace Crim (que já é nomeada de Dead Sexy) caindo em uma armadilha e, tendo estacas atravessadas pelo corpo, conseguindo ser retirada sem muitos problemas... até voltar para o mesmo buraco – só que, nessa última vez, sem metade do corpo e ainda com alguma vida. Esse forma de a direção lidar com o material consegue dar validade ao todo, àquilo que está acontecendo, sem a necessidade de se criar uma ligação mais direta, que geralmente acontece pela identificação com as personas dramáticas.

Além disso, é tudo tão bem orquestrado que A Caçada, em menos de 15 minutos, já mostra ter um poder enorme enquanto cinema e que pode criar (como já estava criando) uma simbologia social por meio do seu principal subtexto, que envolve os mundos excludentes de boa parte das elites – tanto aquela intelectual que menospreza o que é do povo e o que é empírico quanto aquela que menospreza a ciência e o conhecimento adquirido. Zobel, nesse sentido, parece não tomar partido algum, ironizando Martin (Dean J. West) e seu gosto por caviar e champanha do mesmo modo que satiriza (Shut the F**k Up) Gary (Ethan Suplee) e sua visão de mundo fundamentada por teorias da conspiração.

Estrutural e histórica

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Mesmo assim, com tantas ferramentas para manter o controle sobre a relevância estrutural e temática do filme, o diretor é sabotado pelos roteiristas. A mesma proposta válida abraça-se forte demais a Orwell no terceiro ato e, por essa perspectiva, pode fazer muito do que foi construído desmoronar. A partir da aparição definitiva de Athena (Hilary Swank), os diálogos tornam-se expositivos, com direito a pergunta e explicação detalhada, em meio a uma luta corporal, sobre o motivo de Crystal (Betty Gilpin) ser apelidada de Bola de Neve.

Nesse momento, o texto parece insatisfeito em ter nomeado um porco de Orwell e ter a sua protagonista chamada pelo nome do personagem mais humano de A Revolução dos Bichos durante quase todo o filme, além de baseado em todo um tema muito caro para o escritor britânico. A necessidade de explicar faz A Caçada vestir a carapuça dos arrogantes e presunçosos caçadores. Julgando-se superiores ao público, Cuse e Lindelof, nessa inserção literária, demonstram – provavelmente sem querer – que o elitismo cultural é tão estrutural quanto a destruição da cultura para o domínio de um povo é histórica.

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No final das contas, A Caçada é um filme que se desenvolve rapidamente e cresce com muita força durante seus dois primeiros terços. O problema é que, ao tentar abraçar Orwell de maneira tão direta, toda a rigidez da formalidade do seu diretor fica a um passo de perder a originalidade. É como se os roteiristas dissessem para o público que são muito inteligentes por utilizarem a obra de Orwell e esquecessem que, para fazer referências, não existe a necessidade de colocá-las à frente. Talvez o ideal – como conseguiu provar Zobel por quase todo o filme – seja deixar o resultado falar por si e permitir que o inconsciente coletivo ceda interpretações.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Canaltech