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Como a arte pode “esculpir” e até “acariciar” nossos cérebros

Por| Editado por Luciana Zaramela | 21 de Maio de 2021 às 10h20

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Daian Gan / Pexels
Daian Gan / Pexels

Quem nunca desfrutou do súbito relaxamento consequente do play em uma música, um filme ou uma série depois de um dia difícil? A arte nos rodeia todo o tempo, e nos fornece sensações de satisfação que por vezes sequer paramos para perceber — e, menos ainda, entendemos os efeitos que a arte em geral traz ao nosso cérebro. E é justamente isso que buscamos compreender por meio de uma conversa com especialistas da psicologia e psiquiatria.

As pesquisas sobre o assunto vêm acontecendo há alguns anos. Um relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS) de 2019 identificou que a arte pode prevenir doenças. "Os resultados de mais de 3 mil estudos identificaram um papel importante para as artes na prevenção de doenças, promoção da saúde e gerenciamento e tratamento de doenças ao longo da vida. O impacto benéfico das artes poderia ser promovido por meio do reconhecimento e da ação com base na crescente base de evidências, promoção do engajamento artístico nos níveis individual, local e nacional; e apoiar a colaboração intersetorial", constou o relatório.

Na época, a diretora regional da OMS para a Europa, Piroska Östlin, apontou que "trazer arte para a vida das pessoas por meio de atividades como dançar, cantar e ir a museus e shows oferece uma dimensão adicional” de como é possível melhorar a saúde física e mental. O relatório da organização ainda fez uma análise sobre atividades artísticas que buscam promover a saúde e prevenir problemas de saúde, lidar e tratar problemas físicos e mentais.

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No ano passado, o neurocientista, músico e autor francês Pierre Lemarquis publicou o livro L'art Qui Guérit ("A arte que cura", em tradução livre). O autor tece história da arte, filosofia e psicologia ao mesmo tempo em que cita surpreendentes descobertas atuais de seu campo da neurociência sobre o poder de cura da arte. O livro detalha esse novo subcampo da "neuroestética", que usa tecnologias como a imagem de ressonância magnética funcional para examinar quais vias do cérebro estão envolvidas ao fazer ou contemplar uma obra de arte e em que medida são estimuladas.

A obra literária aponta que todos os tipos de arte atuam no cérebro de uma forma dinâmica e multifacetada. As redes neurais são formadas para alcançar estados elevados e complexos de conectividade. Em outras palavras, a arte pode “esculpir” e até “acariciar” nossos cérebros.

A arte e o cérebro

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Dr. Luiz Scocca, psiquiatra pelo Hospital das Clínicas da USP e membro da Associação Americana de Psiquiatria (APA), nos conta que esse fenômeno da interação humana com a arte é muito anterior ao conhecimento que nós temos hoje em dia sobre o cérebro, uma vez que já se fazia arte muito antes de se pensar em ciência reacionada aos fenômenos cerebrais, mas que ainda assim os artistas já percebiam que a arte mexia com os sentidos e os sentimentos, portanto mexia com o cérebro.

O psiquiatra menciona que em contato com a arte, determinadas áreas do nosso cérebro são estimuladas. É o caso do sistema límbico, também conhecido como cérebro emocional. Trata-se de um conjunto de estruturas localizado no cérebro de mamíferos, abaixo do córtex e responsável por todas as respostas emocionais.

"Quando você aprecia um quadro, uma música ou uma peça de teatro, a emoção pode ser tão intensa quanto viver outras coisas extremamente prazerosas, como uma relação sexual, ou comer um prato de que gosta. Essas áreas são extremamente ativadas, e o próprio ensino da arte faz estas áreas cerebrais aumentarem bastante o fluxo sanguíneo. Portanto, o ensino da arte é muito importante", observa o especialista.

"Hoje os artistas se interessam pelo que acontece com o cérebro quando o público aprecia suas obras. E cada vez mais interessa a ciência, a educação, todas essas modificações que acontecem no cérebro, e que em geral são positivas: aumento da cognição, aumento da autoestima, geração de prazer, liberação de várias substâncias positivas", acrescenta.

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Scocca menciona, ainda, a função dos chamados neurônios-espelho, que são justamente relacionados a empatia. "Eles parecem desenvolver um papel muito importante. São caminho de mão dupla no aprendizado da arte, tanto para realização quanto ampliação da arte em si, porque na medida em que é influenciado por um trabalho artístico, esses neurônios são ativados para receber, produzir, interagir com a arte", explica. Segundo o psiquiatra, alguns transtornos mentais sofrem justamente com a falta de neurônios-espelho, como o autismo.

O psiquiatra menciona, ainda, a dopamina (liberada quando se está apreciando qualquer tipo de arte e na medida que a pessoa gosta, cada área cerebral é envolvida e estimulada de uma maneira diferente) e a serotonina ( um hormônio ligado ao bem-estar, a sentimentos de felicidade, de relaxamento), que fazem com que a arte tenha uma certa ação na prevenção ou até mesmo no tratamento de casos de depressão, por exemplo.

Em contrapartida, Scocca alerta que uma pessoa num estado depressivo não tem vontade de ouvir música, ver filme ou assistir a uma peça de teatro, pois está com a energia diminuída, triste, desesperançosa, pensando em outras questões. "Mas justamente o que acaba acontecendo é um círculo vicioso, porque na medida que se priva dessas emoções, a pessoa fica mais deprimida. Então tanto nos serve como um sinal de melhora desses transtornos mentais, a pessoa passar a ouvir música, cantar de manhã, voltar a desenhar, mesmo sem compromisso. É bom sinal, porque a privação completa disso tira da pessoa uma vivência prazerosa e emocional", completa.

Portanto, na medida em que acontece alguma melhora no quadro (o que pode ser feito com medicamento), quando se introduz um processo terapêutico, a pessoa passa então a realmente melhorar a passos largos com o auxílio desses estímulos. "Todas essas substâncias voltam a ser produzidas em grandes quantidades. E outros fatores, como neurotróficos cerebrais, ou mesmo a diminuição de substâncias negativas, como o excesso de adrenalina. A arte pode ter essa função de acalmar", descreve.

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Arteterapia

A arte é tão reconhecida como benéfica ao cérebro que existe inclusive uma prática terapêutica denominada arteterapia. "A arte tem a capacidade de manifestar conteúdos que estão no inconsciente pessoal do cliente, sendo trazidos para fora de uma forma não visual ou agressiva. Nós temos a consciência, abaixo dela temos uma parte mais obscura, sombria, que habitam conteúdos que não queremos ter contato, mas que se manifestam em nossas angústias. Esses conteúdos são os que levamos a nosso terapeuta através da palavra, mas a palavra é consciente. A arteterapia tem a capacidade de organizar sem a fala, com a orientação e acompanhamento de um profissional devidamente qualificado, usando de todas as sete artes", explica o teatrólogo, psicólogo e arteterapeuta Javier Llopart

Para Javier, toda arte tem a capacidade de manifestar movimentos conscientes e inconscientes em nosso cérebro, e existem partes específicas do cérebro que são ativadas ao contato com a arte, partes responsáveis pela criatividade, fala, audição, escrita e, principalmente, sentimento. "No entanto, não conseguimos definir o que determinada obra causa nas pessoas, os sentimentos se manifestam por identificação", observa. O arteterapeuta usa, como exemplo, a famosa obra "O Grito", de Vincent van Gogh. "Ao olhá-la todos podem sentir a intensidade que o personagem grita, até ouvir a voz gritando. Mas gostar ou rejeitar estará ligado aos sentimentos que a arte gera", acrescenta.

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O especialista reitera que uma reprodução artística tem a função de levar-nos a um processo de reflexão, e mesmo que uma obra não busque nossa cognição para compreendê-la, todas acabam gerando algum tipo de sentimento. "O que geralmente recomendo para meus pacientes são desenhos animados, séries, filmes que os levem a reflexão de seus sentimentos ou sintomas, mas todos debatidos em ambiente clínico, pois é importante se falar do que foi sentido. Cada pessoa vai manifestar sentimentos diferentes com a mesma arte. Todos temos um amigo que não gostou de ouvir uma música, ou assistir um filme que indicamos. Somos pessoas diferentes, temos reações diferentes", afirma.

Questionado se há algum tipo de arte que seja mais impactante para o cérebro, Javier aponta que não há uma arte específica preferida pelos profissionais dessa prática terapêutica, mas que é mais comum recorrer às artes plásticas, através de desenho ou escultura. "Acredito que a arteterapia esteja em todos os lugares. Arte é vida e a forma com que eu me relaciono com ela", diz.

Para o arteterapeuta, consumir e fazer arte impactam com a mesma intensidade, e o que diferencia é que quando consumimos, o objeto é externo e gera no observador o sentimento previamente proposto pelos artistas. "Ao assistir a uma peça de teatro temos ali representado o trabalho de vários artistas que caminham para te levar a uma catarse, todos estão se conversando na apresentação, mas o sentimento é esperado. Ao fazer uma arte o conteúdo é interno, manifestado de dentro para fora, aquilo que estou representando está dentro de mim e é algo que eu quero falar", explica.

Na Arteterapia, Javier descreve que é comum usar o diálogo entre o interno e o externo, como por exemplo, um desenho inspirado em uma história. "Ao contar uma história, que é um conteúdo externo, ativo sentimentos internos na pessoa. Peço ao cliente que faça uma produção artística, assim ele poderá manifestar os conteúdos internos que foram ativados no contato com essa história. Isso pode ser feito com a utilização de uma, duas ou mais artes", conclui o psicólogo.

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Fonte: Com informações de Artnet News e Organização Mundial da Saúde (OMS)