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Crítica | Ford vs Ferrari e a necessidade de freios na vida

Por| 15 de Novembro de 2019 às 14h00

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Fox Film do Brasil
Fox Film do Brasil

A velocidade é quase que um modelo para a vida contemporânea. Tudo tem ficado cada vez mais rápido, mais dinâmico. O momento de frear, assim, talvez seja o ponto-chave, aquele espaço de tempo em que podemos nos sentir leves, dispostos a perceber a nossa existência e quão frágil ela é.

Cuidado! Daqui em diante a crítica pode conter spoilers!

A paixão

Dessa forma, Ford vs Ferrari mergulha naquele que talvez seja o bom sentimento mais instantâneo – a paixão – não para discutir sobre os malefícios da sensação passageira de atração, mas para revelar diferenças entre esse sentimento mais primitivo, de ímpeto, e aquele que molda a alma e transforma quem o sente em alguém melhor. Nesse sentido, Carroll Shelby (Matt Damon) e Ken Miles (Christian Bale) – e a família deste – são construídos sob a ótica da emoção enquanto tudo à volta deles é desenvolvido de maneira esquematizada: ao passo que o embate entre a Ford de Henry Ford II (Tracy Letts) e a Ferrari de Enzo Ferrari (Remo Girone) é surgido somente no fim do primeiro ato e com tons institucionais e burocráticos, tudo entre Shelby e Miles é exposto com os nervos à flor da pele.

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Enquanto na Ford existe Leo Beebe (Josh Lucas) – pintado como vilão praticamente sem dimensões – e os italianos à beira da falência são esboçados à base de tintas corporativistas, Shelby e Miles são centrados em valores humanos menos impessoais. Da chave inglesa, logo emoldurada – provando o valor que tem um ato apaixonado –, a uma briga infantil assistida por Mollie (Caitriona Balfe), a dupla carrega uma força narrativa capaz de dar sobrevida ao filme, que tem pouco mais de duas horas e meia, sem deixá-lo cair em um limbo sobre organizações empresariais.

É interessante como Shelby, sempre muito racional e comedido (e até inocente) em suas ações, é apresentado como aquele que tem o coração fragilizado. Com problemas cardíacos, a personagem de Damon chega a ressaltar, como piada – com fundo de verdade –, o bom gosto que tem seus comprimidos. É como se, nas entrelinhas, ele dissesse sobre o valor que tem cuidar da vida especialmente para ver o amigo brilhar.

Inclusive, Damon, que pode ser ofuscado pelo desempenho hipnotizante de Bale, tem, em sua abordagem, emoções que transbordam dos seus olhos. Do início, quando a direção de James Mangold (de Logan, 2017) mescla o primeiríssimo plano do rosto de Shelby com sua visão subjetiva (revelando a pista à frente), ao final, quando se fecha esse ciclo solitário, a presença de Damon é fundamental para a força dramática de Ford vs Ferrari. Ele (Damon) é o freio necessário – o contraponto que completa – para a performance de Bale.

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Além disso, é com Damon ao volante que Mangold faz valer a pena o encontro mais icônico entre a paixão formal – regada a marketing – e o sentimento genuíno do ex-piloto pelo seu trabalho. Ao expor Henry Ford II de um jeito quase debochado àquilo que ele é dono, deixando que o rosto sério de Shelby observe o choro desprezível do empresário, o diretor põe em xeque tudo aquilo que já foi regado a emoções mais puras e passou a ser somente uma fonte de lucro. Ou, no mínimo, traça uma divisória muito clara entre o sentimento de quem põe a mão na massa e a frieza de quem aguarda o lucro sentado.

O mergulho e pausa também é música

Ford vs Ferrari, ainda e através da direção de Mangold, consegue se utilizar da linguagem para imergir o espectador. A intimidade com que busca os closes dos pilotos em alta velocidade, as trocas de marchas em planos detalhes e a visão da pista sempre como se a tela fosse um para-brisas podem fazer o coração acelerar, assim como a conexão entre Shelby e Miles – ressaltada nas ultrapassagens em que o primeiro parece narrar o que a personagem de Bale faz na pista.

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Toda essa imersão é sedimentada pela edição de Andrew Buckland (de A Garota no Trem), Michael McCusker e Dirk Westervelt (ambos de também de Logan), com cortes que soam ritmados e que, por pouco, não compõe uma música concreta junto ao desenho de som de Jay Wilkinson (de Velozes & Furiosos 6). Essa edição de imagem e som – aliada à mixagem de Steven Morrow (de Nasce uma Estrela) que favorece o ronco dos motores e os barulhos da caixa de câmbio –, aliás, faz com que a música do experiente Marco Beltrami (de Um Lugar Silencioso) e de Buck Sanders (de Guerra ao Terror) passe praticamente despercebida. E, se isso já não seria ruim dada a profundidade do mergulho proposto por Mangold, vale ressaltar que Beltrami e Sanders são respeitosos o suficiente para jamais tornar melodramáticas as cenas mais dolorosas – como aquela em que Miles recebe a notícia de que não irá participar das 24 Horas de Le Mans. Ali mesmo na oficina, ele (Miles) tem seu momento mais íntimo, seja com o rádio, seja com a esposa, sem qualquer intromissão da música, em um respeito fundamental para o funcionamento da cena e percebido pelos compositores: porque pausa também é música.

O freio de uma vida dura

Por tudo isso, Ford vs Ferrari é um filme que brinca (no melhor sentido) com a percepção sensorial do público. Mangold está muito mais interessado na imersão do espectador do que em uma moldura estética (moldura arquitetada em Logan). Não que o filme seja esteticamente incoerente, mas ele parte da normalidade – que parece ser a característica mais marcante do diretor de fotografia Phedon Papamichael (de Nebraska) – para evocar o piloto que existe em cada um.

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E não digo de um piloto capaz de tirar o máximo de um GT40, mas de alguém que entende que toda velocidade da vida precisa de bons freios; que, às vezes, é necessário frear um pouco mais à frente para ultrapassar obstáculos; que, de repente, se não há nada no retrovisor e nada à vista no caminho, talvez seja melhor respirar fundo e esperar, porque estar sozinho pode ser somente uma linha do tempo aguardando o freio de uma vida dura.