Crítica | Nasce uma Estrela é muito mais que um produto
Por Sihan Felix | •
É a quarta versão da mesma história. O mesmo título, os mesmos personagens (com nomes diferentes)... E funciona porque Bradley Cooper, estreando como diretor, demonstra compreender o ponto de interseção entre música e cinema – a primeira e a sétima arte. Se no início da história do cinema a música funcionava, em resumo, para abafar o barulho do cinematógrafo, não tardou para que alcançasse quase que um pé de igualdade – o primeiro filme falado, por exemplo, foi justamente um musical, O Cantor de Jazz. Hoje, a música pode ser um personagem (vide Tubarão), pode indicar sentimentos, construir relações, contar a própria história ou ser o ponto de partida de tudo (como na animação Fantasia).
Cuidado! Esta crítica pode conter spoilers!
12 notas entre qualquer oitava
Há um determinado ponto durante Nasce uma Estrela em que Jack (Bradley Cooper), através de um dos diálogos mais bonitos (e são muitos), diz para Ally (Lady Gaga) que a música é, essencialmente, 12 notas entre qualquer oitava e que tudo o que um artista pode oferecer ao mundo é como ele enxerga essas 12 notas. Se, musicalmente, as palavras dele já fazem sentido – visto que o que muda entre uma música e outra é “somente” a combinação das notas na construção da tríade melodia-harmonia-ritmo –, a afirmação ultrapassa essa questão superficial: Jack está falando do próprio Cooper, do seu modo de enxergar a mesma história (a do filme) e recontá-la.
Ao mesmo tempo, Jack está falando do processo extremamente delicado que envolve a criatividade. Isso é exposto de uma forma muito sensível e visceral por Cooper enquanto diretor: sempre que as músicas dele ou de Ally soam como se viessem de dentro, da alma, a câmera na mão constrói um sentimento de intensidade e intimidade, que é o reflexo das letras; por outro lado, quando a carreira de Ally decola e ela surge como atração de um programa de TV que tem como host Alec Baldwin (como ele mesmo – em uma das pontas mais curtas que já fez na carreira), é possível perceber que o diretor transformou a condução das imagens na mesma medida em que a música da artista foi transformada. Há movimentos de câmera, mas tudo é pasteurizado, a música é exposta ali como um produto que, se não cabe discutir sobre a qualidade, revela o completo oposto: a exposição artística passa a nascer de um processo que inicia externamente.
Talvez, essa seja a discussão mais profunda de Nasce uma Estrela. O roteiro (que também tem a contribuição de Cooper) revela não somente a ascensão de uma estrela pop, mas uma metamorfose para que ela consiga de fato brilhar. Para a indústria, boa parte dos artistas são como uma Casa da Moeda: é a partir deles que o dinheiro é feito. Os produtores, representados por Rez Gavron (Rafi Gavron) no filme, direcionam a arte para o que supostamente o público quer, funcionando, assim, como mentores tanto dos artistas quanto da própria massa que os seguem.
Um romance ao qual se pertence
Além da crítica pontual sobre a mecanização musical, Nasce uma Estrela em nenhum momento esquece a relação entre os protagonistas. Trata-se de um romance afinal. E Cooper é de uma delicadeza excepcional também nesse ponto. Desde o primeiro encontro entre os dois, quando ela canta La Vie en Rose (de Édith Piaf), a sensibilidade do diretor em desenhar a história com a câmera é de uma experiência absurda para um estreante na função. A ingenuidade de Ally quando, cantando deitada no balcão, enxerga Jack pela primeira vez é algo que vai muito além de um romance qualquer. A cena parece refletir a letra do que ela canta que, não por acaso, é em francês (a mais romântica das línguas – fato que tem um contexto histórico que data do século XVIII). Em tradução livre, a música diz: “Aí está o retrato sem retoque do homem a quem eu pertenço.”
E é no primeiro encontro com troca de palavras entre eles, logo após esse pocket show, que há um resumo essencial do que Cooper pensa enquanto artista: Ao conversar com Ally, Jack apenas quer a ver como ela é de fato, sem maquiagem, sem falsas sobrancelhas, sem tinta no cabelo. A cena é tão simbólica que sedimenta tanto a decadência dele quanto a subida ao estrelato dela. Ele quer a ver por dentro, ajudando-a a perceber – inclusive pedindo para retirar com as próprias mãos uma das falsas sobrancelhas – que ela é muito mais do que imagina, muito mais do que um nariz grande (Gaga, inclusive, era chamada de “feia de nariz grande”, o que faz o filme tocar, através da metalinguagem, no assunto do bullying). Mas é justamente tudo o que ele (Jack) tem por dentro que o consome. E é tudo o que ele pede para não ver nela a esse ponto que a faz chegar, mais à frente, ao Grammy.
Desenhando com luzes e sombras
É de se destacar o visual de Nasce uma Estrela. O futuro de Jack, inclusive, é exposto sem demora já no princípio, quando, ao sair de um show, seu motorista para em frente a um luminoso e colorido outdoor com imagens que farão sentido nos minutos finais. A insistência em permanecer em um ângulo que não deixa tais imagens saírem da visão do espectador, mesmo quando o carro segue pela rua seguinte, demonstra a preocupação do diretor em preparar terreno para o que de mais pesado está por vir. Ele sabe que tem nas mãos um romance e entende que nada pode ser uma surpresa tão intensa a ponto de desconfigurar a história.
Essa preparação é realizada também pela direção de fotografia positivamente absurda de Matthew Libatique (que concorreu ao Oscar por Cisne Negro). Quando, ao deixar Ally em casa pela primeira vez, Jack abre a janela do carro para vê-la novamente, Libatique expõe o personagem à luz. Mas, quando ela vira as costas enfim e Jack move a cabeça para trás, o diretor de fotografia esconde-o do pescoço para cima, nas sombras. Além disso, a luz sempre vibrante dos shows de Ally envolve o público como se este estivesse realmente presente, ao passo que o amarelado recorrente da iluminação dos shows de Jack e o vermelho forte que de vez em quando cobre seu rosto já revelam um sentimento de atenção, de alarme.
Muito além de apenas um produto
Vale ressaltar, sem nenhum apelo, as atuações: Se Lady Gaga consegue fazer com que sua personagem seja vista como o espelho do afeto e da compaixão de Jack, jamais o abandonando nos momentos mais difíceis, ela também revela uma expressividade nos olhos que só as grandes atrizes têm. Cooper, por sua vez, tem um trabalho vocal (musical e não musical) impressionante, além de transbordar de carisma e empatia. Mas é Sam Elliott, como Bobby (o irmão mais velho de Jack), que, mesmo com pouco tempo em cena, compõe um personagem complexo com dignidade absoluta. A cena em que ele escuta do caçula que sempre foi o verdadeiro herói da sua vida e, logo em seguida, a imagem flagra seu rosto enquanto dá ré é, sozinha, uma das maiores forças de interpretação do filme.
Nasce uma Estrela é o terceiro remake de um filme original lançado em 1937. Mesmo assim, surge como uma obra original. Não em sua história, claro. Trata-se de um conto de fadas que revela o arco-íris em todas as suas cores e que não se priva de mostrar o lado mais sombrio: uma dualidade longe de ser novidade. Mas, como a música, pela qual a forma de enxergar 12 notas em qualquer oitava vai traduzir o que o artista tem a dizer, é o que o diretor enxerga na mesma história já contada antes que produz o resultado. E Bradley Cooper, utilizando uma experiência técnica muito acima da média para um primeiro filme, enxergou com o coração. Nasce uma Estrela não é um produto apenas, é uma obra-prima.