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Crítica | Rota de Fuga 2 ou a elefanta pintora faria melhor

Por| 23 de Julho de 2018 às 10h23

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Lions Gate
Lions Gate

Não é de ontem (mas não faz muito tempo) que a China começou a investir no cinemão comercial. Não somente a investir, mas a buscar identificação em blockbusters. É um tipo de escambo: em troca da chinezação dos filmes, os orientais garantem público naquele que é o país mais populoso do mundo.

Indo além, os chineses nunca esconderam o desejo de conquistar o chamado soft power (comumente traduzido como poder brando), um tipo de colonização que não envolve qualquer poderio militar. Em resumo, a indústria americana do cinema está de portas abertas para coproduções, está disposta a modificar diálogos e a fazer diferentes versões para o agrado do governo e do mercado chinês e, ainda, disponível a buscar locações no país asiático (vide, entre tantos outros, Looper: Assassinos do Futuro, Transformers: A Era da Extinção e Homem de Ferro 3).

Um agente nocivo e os dois pintos com fome

Em meio a essas superproduções, há diversos filmes menores que buscam uma espécie de unificação entre os países, unificação essa que sugere ser inconcebível fora do cinema em meio a uma guerra comercial entre as duas potências. O problema é que a guerra pode ter afetado inclusive a relação cinematográfica entre Donald Trump e Xi Jinping, dando à luz uma obra tão tosca que pode parecer inacreditável até mesmo para o folclórico Uwe Boll.

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Rota de Fuga 2 não é uma produção que se pode chamar de inferior, pois posicioná-la abaixo de outras é colocá-la numa mesma categoria. Trata-se de um agente nocivo, que constrange e danifica qualquer mínima noção do que é um filme. E isso pode ser claro tanto para o público em geral quanto para um chimpanzé que esteja assistindo “de boa” comendo uma bananinha e coçando a cabeça.

Por mais que seja importante uma crítica evitar a efusividade para qualquer um dos lados, é necessário igualmente avaliar se o que está em jogo é um filme ou um trabalho que se afasta substancialmente do básico. Deveria haver um limiar que separasse um, de fato, péssimo filme (como o produzido recentemente pela Netflix Próxima Parada: Apocalipse) de um produto que deturpa qualquer classificação negativa.

Ao mesmo tempo em que a direção de Steven C. Miller é recheada de uma incompetência sem limites, o diretor não é inexperiente, o que pode transformar incompetência em uma palavra branda, que indica um aprendizado pela frente. Falta uma noção básica de linguagem a Miller, que transparece desde a absoluta inexistência de racionalidade na utilização de uma câmera na mão que busca somente uma falsa agitação a uma completa ausência de passagem temporal.

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Essa última particularidade, auxiliada pela edição amadora de Carsten Kurpanek e Vincent Tabaillon, faz com que o tempo do filme seja um deus-nos-acuda: Tudo se passa em dois dias? Em uma semana? Em um mês? Mais? Aliás, classificar como amadora a estabanada montagem é uma blasfêmia na verdade, pois sugere uma forma de amor que Kurpanek e Tabaillon não demonstram ter.

Ray Breslin (Sylvester Stallone), a certo ponto, comenta: “Com inteligência e paciência, nada é impossível.” É simpático o grau de metalinguagem que o roteiro de Miles Chapman alcança com essa fala. Pode soar como se Ray (Stallone) recomendasse aos espectadores que mantenham a tranquilidade enquanto são torturados com o que assistem. De qualquer maneira, não se é obrigado a manter a concentração durante os 96 dolorosos minutos – talvez nem seja possível.

Mas não é exatamente triste que Rota de Fuga 2 seja o sucessor de um primeiro filme até interessante, com o carisma de Stallone e Arnold Schwarzenegger falando com mais propriedade do que a história em si (coescrita por Chapman). O que se lamenta, aqui, é a carência total na construção dos personagens e de uma narrativa simples. Se a figura dramática do garanhão italiano já possuía algum desenvolvimento devido ao filme de 2013 – assim como a de Curtis Jackson (o 50 Cent, que interpreta Hush) –, os chineses, que marcam presença devido a já citada parceria, não têm quaisquer ferramentas textuais que os auxiliem na composição das suas próprias figuras, além de terem o entusiasmo na atuação de dois pintos com fome, escancarando ainda mais a forçada chinezação de Hollywood.

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A elefanta pintora da Tailândia

Poderia a elefanta pintora da Tailândia construir um roteiro sem estrutura definida com mais propriedade? A possibilidade existe – e isso é o que menos assusta dada a capacidade artística desse mamífero tão querido. O que choca, no caso, é essa obra ser o fruto de seres com um cérebro teoricamente mais desenvolvido do que o do animal que pinta com a tromba em troca de aplausos ou de amendoim.

E seria tudo menos catastrófico se essa abominação (não há, realmente, como evitar a efusividade) se entregasse à trasheira e não transparecesse arrogância. Desde aquela frase proferida por Ray, que pode dar a entender que a toxicidade do trabalho de Miller e sua equipe só vem à tona devido à falta de inteligência e paciência do público (levando em consideração que Chapman sabe o que é metalinguagem – o que é de extrema bondade) à fotografia, que aposta em uma luz séria e azulada (sem qualquer efeito para a linguagem) e em tantas luzes coloridas e outras pontuais para imprimir algum tom cool, tudo é um arremedo de nada.

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Uma bem-vinda experiência interespécie

Rota de Fuga 2 é a coisificação do cinema. E é bizarro descobrir que, diante do não-sucesso de crítica e público dessa aberração (lançada diretamente em home vídeo no Brasil), o terceiro já esteja sendo produzido – com roteiro coescrito por Miles Chapman e com Stallone no elenco. Mas o bordão da primeira campanha do deputado Francisco Everardo Oliveira Silva (o Tiririca) não poderia encaixar mais perfeitamente aqui: “Pior que tá não fica”. Não fica mesmo. A menos que amarrem uma câmera nas costas de um chimpanzé por um dia e entreguem o material filmado para uma elefanta editar, o nível não terá como cair.

Se bem que essa experiência interespécie seria muito mais válida.