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Crítica | O Conto da Princesa Kaguya ensina que riqueza não é felicidade

Por| 16 de Março de 2020 às 14h08

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Studio Ghibli
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Baseado em um dos contos mais antigos da cultura japonesa, O Conto da Princesa Kaguya (disponível no catálogo da Netflix) de Isao Takahata aproveita a força da protagonista de uma lenda para transmitir mensagens incisivas a um público contemporâneo. Apesar do traço delicado e da paleta de cores pastéis, essa animação não deve ser subestimada, afinal estamos falando do mesmo cineasta que criou uma das animações mais tristes de todos os tempos: O Túmulo dos Vagalumes (1988).

Com o uso da técnica tradicional de animação, desenhando quadro a quadro, Takahata não só proporciona uma experiência estética que parece inovadora aos olhos de quem está acostumado com animações digitais, mas transmite também a sensação de liberdade de um artista que tem diante de si uma tela em branco.

Atenção! A partir daqui, a crítica pode conter spoilers.

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Adaptação

Nenhuma adaptação é um processo fácil. Dar vida contemporânea a uma história tão antiga sem recorrer em anacronismos é um desafio. Se em sua origem a lenda tentava explicar a fumaça vulcânica do monte Fuji através da relação entre uma mulher que sabia do seu destino e um homem apaixonado, a versão de Takahata toca em pontos complexos demais para a tradição oral de um povo que ainda não havia conhecido os absurdos dos tempos modernos.

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Aproveitando a mística de uma mulher não-humana criada por camponeses que ficam milagrosamente ricos, O Conto da Princesa Kaguya dialoga com uma sociedade adoecida pelo capitalismo. O contraste entre a beleza da natureza intocada, que inclui os humanos que não a exploram, e os horrores cometidos pelos indivíduos por ganância é um tema recorrente em filmes do Studio Ghibli, como A Viagem de Chihiro (2001) e Princesa Mononoke (1997).

Embora mulheres fortes sejam outro ponto de convergência das produções do estúdio, o feminismo não é panfletário. A força de Kaguya, ainda que encontre poder na sua origem e beleza sem precedentes, vem de um desejo de liberdade, de não adequação às imposições sociais, afinal qual é a felicidade de ser uma princesa se você não pode rir ou sequer transpirar?

Relações

Sua beleza e riqueza são justamente sua maldição, os motivos pelos quais é impedida de ser ela mesma. A aparição dos pretendentes mais cobiçados da região invocam a ideia de que status social não é garantia de honestidade, pelo contrário, e diferentemente do conto original, todos os homens que aparecem na vida rica de Kaguya a tratam como um objeto, como se, assim como qualquer outro produto, ela pudesse ser adquirida através do capital. Mesmo quando um fio de esperança surge na declaração singela do Príncipe Ishitsukuri, o suposto amor dele não passa pela prova das aparências.

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A inserção de Sutemaru é um ensinamento que vale mais que qualquer ouro e não somente para as crianças da nossa geração, mas para todas as faixas etárias: o amor, tão puro quanto a natureza (porque somos humanos e, portanto, somos natureza), não é algo que passa pelo dinheiro ou pelas aparências. Ele surge naturalmente de uma relação verdadeira, de duas pessoas que se conhecem e se conectam. Embora não sejamos obrigadas a casar com um desconhecido na nossa cultura, isso não significa que formas romantizadas de submissão não tenham sido criadas, como as silenciosas exigências de que as mulheres devem atingir um padrão estético ou de que é necessário casar-se com uma pessoa rica.

Técnica com coração

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Os sentimentos ruins experimentados por Kaguya diante da vida que lhe é imposta pela sociedade patriarcal através do seu pai rende um dos momentos mais belos da animação. Assustada com o modo como a objetificam, Kaguya foge e o traço se transforma. Deixando a delicadeza de lado, as imagens adquirem traços mais agressivos e impulsivos, além de trocar o cinza que contornava as cores pastéis pelo preto. A utilização do branco, por outro lado, parece ligar Kaguya à luz (soma de todas as cores), o esmaecimento das bordas confere ainda um tom onírico à história.

Esse momento só é equiparável ao voo de Kaguya e Sutemaru. Nossa cultura foi influenciada durante décadas por produções Disney que propagaram uma visão nociva e falsa da vida de princesa. Mesmo quando Frozen (2013) nos disse que princesas não precisam de um homem para serem salvas, que o amor verdadeiro não vem de um desconhecido e que os príncipes podem ser os vilões, ainda assim as princesas são princesas e alguma forma de hierarquia assombra a história. O último encontro de Kaguya e Sutemaru transmite o que deveria ser um dos pilares de um amor verdadeiro: a igualdade entre sujeitos. Se em muitos filmes os relacionamentos são reduzidos a momentos românticos idealizados, as produções Ghibli exploram relações que são ou nascem de verdadeiras amizades.

A trilha sonora de O Conto da Princesa Kaguya é um espetáculo à parte. Ao mesmo tempo simples e complexas, as melodias criadas por ‎Joe Hisaishi tornam os desenhos de Takahata quase tão mágicos quanto a própria princesa-bambu, como se o áudio e o visual tivessem sido concebidos juntamente como um único corpo.

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Por seguir quase à risca os acontecimentos do conto popular, o roteiro da animação é em boa parte previsível, mas recompensa o espectador que tiver paciência com um final arrebatador. Embora não seja explicitamente citado, o líder (?) dos habitantes da lua é Buda, cujos ensinamentos dizem muito sobre os altos e baixos da vida e sobre desapego material. Em sua passagem pela Terra, Kaguya entende que a vida é muito de sofrimento e que a felicidade vem de uma busca. Então, o que te faz feliz?