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Crítica | 2001: Uma Odisseia no Espaço mostra que podemos estar no início do fim

Por| 02 de Abril de 2020 às 21h15

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Warner Bros. Entertainment
Warner Bros. Entertainment

Talvez, o mais complicado de escrever sobre um filme consolidado, que resistiu ao teste do tempo e se tornou um clássico seja o fato de que praticamente tudo já foi dito sobre ele. Somente na Internet Movie Database (IMDb), 2001: Uma Odisseia no Espaço (disponível no Telecine) tem mais de dois mil textos cadastrados, quase três centenas de críticas oficiais e uma avaliação em nota que é resultado dos votos de mais de meio milhão de pessoas.

Além disso, o filme de Stanley Kubrick, que teve sua première exatamente em 2 de abril de 1968 (há exatos 52 anos), já foi tema de livros, artigos acadêmicos e, claro, influenciou o cinema para sempre – algo que é notado especialmente dentro do gênero da ficção científica.

Por outro lado, apesar de ser adorado por uma legião de fãs incondicionais, o filme tem seus detratores, algo que não é difícil de entender. A reclamação, geralmente, gira em torno da lentidão com a qual Kubrick conduziu as cenas – algo que até mesmo o programa Choque de Cultura resolveu abordar e fazer humor.

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Mas escrever sobre 2001: Uma Odisseia no Espaço, hoje, não é somente difícil, é desafiador; e pode parecer prepotente. Meu objetivo, de todo jeito, não é explicar o filme ou dizer se ele é bom, ruim ou derivados – o tempo já fez esse papel e eu, com 12 anos trabalhando com críticas oficiais, não me sinto capacitado e nem me sentirei com mais 12 ou mais 50. A ideia é trazer uma perspectiva pessoal que, talvez, possa ser útil para prolongar a experiência dos 149 minutos daquele que é um dos filmes mais emblemáticos já realizados.

Cuidado! A crítica pode conter spoilers!

O amanhecer da humanidade

O sol, que surge inicialmente, pode trazer o conceito de renascimento. Kubrick, conhecido pelo seu perfeccionismo, alinha a ideia da simbologia do sol – que é recorrente durante o filme – com a terra e a lua. Ao mesmo tempo, essa abertura parece carregar consigo o símbolo de um deus neopagão que representa fertilidade, o Deus Cornífero da Wicca, de cabeça para baixo. Essa representação precede uma das cenas icônicas, que traz uma briga entre dois grupos de primatas.

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Após se esconder para passar a noite, o grupo perdedor percebe a aparição do monolito e Kubrick – junto ao montador Ray Lovejoy (em seu primeiro trabalho) –, em somente poucas mudanças de cenas, constrói a humanidade: a vingança, o nascimento da consciência, o surgimento da sensação racional de poder, força e domínio, a intimidação através de uma ferramenta (ou arma). Mas, imageticamente, são somente primatas, com um deles representando uma espécie de macho alfa, com o osso fálico na mão e arrogantemente sentindo-se poderoso.

Nesse momento, Kubrick e Lovejoy – este que chegou a editar O Iluminado (também de Kubrick, 1980), Aliens, o Resgate (de James Cameron, 1986) e Batman (de Tim Burton, 1989) – realizam a transição que seria das mais geniais e significativas da história do cinema: o primata lança o osso para cima e, rodopiando, ele (o osso) transforma-se em uma nave no espaço. Em poucos segundos (dois ou três provavelmente) e a partir de um osso (a morte) e uma construção inorgânica em órbita (onde o homem havia chegado – e, na realidade, o homem só chegou à lua um ano após o lançamento do filme), 2001: Uma Odisseia no Espaço viaja milhões de anos e reflete a história da humanidade de maneira absoluta e até sarcástica.

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Não demora para que a construção kubrickiana de símbolos ressurja, dessa vez com comentários sobre o presente: a caneta que flutua na gravidade zero como flutuou o osso jogado para cima indicando que a força de uma assinatura pode ser maior do que a de uma arma – podendo comandar milhares de armas inclusive. Vê-se que a brutalidade do primata, que chega a ser sádica, cedeu espaço para a diplomacia, mas que nem por isso as guerras foram extintas. O que toma conta, enfim, é uma guerra silenciosa – o mundo estava em plena Guerra Fria. Segue-se a uma conversa que remete à briga dos dois grupos de primatas: se, antes, a briga era por um poço d’água, agora os homens em reunião conversam em uma mesa circular (todos iguais – como na clássica Távola Redonda) com copos d’água.

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Fruto da evolução

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Toda essa evolução chega à nave Discovery One, que vai a Júpiter – seguindo um sinal do monolito. Aos poucos, Kubrick vai deixando pistas de que o homem evoluiu até o ponto da arrogância máxima, de acreditar tanto em seu poder e inteligência que subjuga a tudo. Ali, na Discovery One, a humanidade é como ratos de laboratório, correndo em círculos. O controle é de HAL, uma inteligência artificial poderosa – que tem como batizado a empresa que, ali no final da década de 1960, era a mais poderosa da área (basta utilizar o alfabeto e passar cada letra uma vez à frente e ler IBM). Kubrick, judeu de nascimento, não perdeu a chance de cutucar a empresa que forneceu serviços para a Alemanha de Hitler durante a Segunda Guerra Mundial).

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A partir da apresentação de HAL, o tratamento dado pela direção de Kubrick parece contextualizar toda a apatia dos personagens humanos. Enquanto o diretor traça um paralelo (um transversal na verdade) com a expressividade exacerbada dos primatas do início, fazendo com que seus atores soem apáticos e inexpressivos, HAL demonstra ter muito mais emoções em sua fala monótona. A perda da humanidade do homem por meio do envolvimento com as máquinas e o aumento das emoções das máquinas por meio do envolvimento com a humanidade parecem selar outro futuro, este que, naquele ponto do mundo e até hoje, ainda é uma incógnita.

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Tudo fica um pouco mais claro através da direção de arte de John Hoesli (de O Buraco da Agulha), que utiliza a ambiência física para revelar mais camadas do filme. A ideia de Kubrick faz com que Hoesli construa cada cômodo com a intenção de provocar certa insensibilidade: tudo é meio sem cor, meio sem arte (contrastando brutalmente com a trilha sonora tomada por clássicos), séptico e frio. É interessante perceber, por exemplo, como Interestelar (de Christopher Nolan, 2014) faz um paralelo nessa desconstrução das emoções: enquanto o filme de Nolan tem uma cena – talvez a sua melhor – que mostra o protagonista (interpretado por Matthew McConaughey) assistindo aos filhos e acabando por chorar compulsivamente, em 2001: Uma Odisseia no Espaço, o Dr. Frank Poole (Gary Lockwood) interage da mesma forma com familiares, mas sem qualquer reação sentimental.

A unidade do filme de Kubrick, assim, é o princípio de tudo: dá-se lentidão a uma evolução de milhões de ano e, simultaneamente, mostra-se que, na crença de ser tão evoluído, o homem não deixou de ser um primata. HAL – que é fruto da evolução e não a evolução em si – não somente entende a sua superioridade, como controla o homem, chegando a atestar, em sua manipulação, que um provável fim da humanidade é reflexo dela própria: "Falha humana. Isso já aconteceu antes. Sempre foi devido a falha humana."

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Poeira estelar

A evolução, que desde o princípio é regida pelo poder (e a corrida espacial é uma das evidências além-filme), cede uma complexidade aos personagens como raros filmes conseguem. Enquanto HAL, vilão (afinal, é referência à Alemanha nazista), quase implora por sua vida e, com sua voz profundamente grave, canta, o Dr. Dave Bowman (Keir Dullea) chega ao seu nível de emoção mais genuíno na interação mais direta com o antagonista. A exploração do medo, realizada por Kubrick e seu corroteirista (o escritor Arthur C. Clarke), dessa forma, acaba por fundamentar esse sentimento como um divisor: HAL não tem poder de fato sobre a sua existência; seu medo é o despertar das emoções humanas... o renascimento da humanidade.

"O homem não tem poder sobre nada enquanto tem medo da morte. E quem não tem medo da morte possui tudo." – Leon Tolstói

Se o renascimento da humanidade é o reflexo das emoções mais primitivas, nesse ponto, Kubrick passa a apostar totalmente na subjetividade – ou ainda mais nela – com planos grandiosos que podem remeter à grandeza do universo. Não somente o homem renasce como existe uma evocação freudiana nas imagens. A Discovery One, que lá no início referenciava o osso fálico, ejeta a cápsula com o Dr. Dave e ela (a cápsula) adentra em uma fenda (nada é mera coincidência – ainda mais em um filme de Kubrick). Após galáxias se refazendo e a vida procurando se estruturar – e pode ser impressionante como tudo é sobre a vida ou a morte (criação ou renascimento ou o fim de tudo) –, o protagonista chega a um cômodo decorado por Hoesli com móveis e pinturas renascentistas (o renascimento novamente).

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Kubrick, judeu de nascença como dito, faz seu personagem quebrar uma taça: símbolo do casamento judaico, essa quebra, além de simbolizar no ritual que o homem é mortal e representar reconstrução, rima diretamente com a canção cantanda por HAL, que, em tradução livre, diz:

"Daisy, Daisy, dê-me sua respostaEu estou meio louco de amor por vocêNão será um casamento eleganteEu não posso pagar uma carruagemMas você ficaria linda em umaBicicleta construída para dois"

De fato, não é um casamento elegante. É quase como uma crise de abstinência – que seria, no caso e talvez, do contato com as máquinas. A música original ainda diz (também em tradução livre): "Afastando-se do caminho da vida." Aquele homem, enfim, olha para a taça tal qual o primata toma consciência da utilização do osso como ferramenta – o plano é o mesmo apesar do ambiente diferente. É um momento de ruptura, de mudança. Ele (Dave), então, vê o monolito e, procurando tocá-lo, remonta a pintura A Criação de Adão (de Michelangelo – renascentista aliás).

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Assim, morre o homem e nasce novamente a humanidade. É tudo cíclico e, o universo, eterno como deve ser. Nada mais claro para o renascimento do que um feto, mas com um olhar de sabedoria que quebra a quarta parede para confirmar, quem sabe, que, antes da razão (ou antes das máquinas) existe o coração; antes da dominação e da subjugação, existe a empatia; e, o que existe depois de qualquer maldade, é o princípio do fim.

Resta saber se, nesse final, estaremos aptos a um recomeço ou se permaneceremos como poeira estelar.

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*Crítica dedicada ao amigo e colega Dan Hetzel.