Crítica | Roma: para que todos possam voar
Por Sihan Felix | •
No contexto mitológico, uma loba encontra Rômulo e Remo em um cesto atolado às margens de um rio e os cria, amamentando-os inclusive. Tal lenda tem, como uma de suas origens, um conflito linguístico, visto que a mesma palavra (lupa) significava tanto a fêmea do lobo quanto cortesã para os romanos.
Assim, de acordo com historiadores, os gêmeos teriam sido criados por uma mulher chamada Aca Larência, que havia exercido o ofício de, justamente, cortesã – e que é, dentro de outra tradição, uma mulher mítica, deusa. Seja qual for a narrativa sobre Aca Larência, parece claro que ela está ligada à adoração aos Lares, divindades da religião romana antiga que fazem referência direta ao Lares familiares – coletivo para indicar os espíritos que poderiam proteger ou prejudicar uma família romana, incluindo os servos e os escravos.
Cuidado! Daqui em diante a crítica pode conter spoilers!
“Os homens se libertam em comunhão”
É interessante perceber o quanto as imagens revelam muito de Roma e o quanto isso vai costurando as memórias de vida de Alfonso Cuarón (mentor do filme). Se a abertura mostra Cleo (Yalitza Aparicio) lavando uma garagem e, no reflexo da água, um avião sobrevoando o local, a imagem que encerra as mais de duas horas de filme é praticamente a mesma, mas sem reflexo, com a câmera voltada diretamente para o céu. Há, ali, uma construção social dolorida, que evoca distância. Uma citação imagética de que, apesar de tudo, voar tão alto nunca está ao alcance daquela mulher. Aquele mundo, há quase 50 anos, era de gente privilegiada.
Existe, nessa mesma abordagem, menção a outro ponto importante da fundação de Roma (a capital italiana agora), que comenta sobre um bando de abutres sobrevoando a região ao despertar do sol, no dia da instauração. Nesse caso, os abutres, representados pelos aviões, não sobrevoam a cidade somente no início e no fim do filme. São nesses pontos que se pode vê-los (e na tela de um cinema durante uma sessão dentro do filme), mas é possível escutá-los em diversas cenas.
Ainda mais significativo é o valor de linguagem empregado para transmitir, sem afetações melodramáticas, os passos de Cleo. Nesse sentido, os movimentos de câmera empregados por Cuarón (que podem soar repetitivos) transmitem uma sensação de rotina cíclica, onde tudo será sempre igual se a revolução não partir de um conjunto. “Ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: os homens se libertam em comunhão”, diria Paulo Freire.
Fica mais clara essa abordagem quando, a um momento, Cleo é levada pela Sra. Teresa (Verónica García) para comprar um berço e, do lado de fora, estoura um confronto, comum no México durante os anos do Partido Revolucionário Institucional (PRI). A câmera passeia pela loja: Sra. Teresa faz questão de dizer que Cleo é sua empregada; mostra-se a revolução acontecendo lá fora; volta-se para dentro do ambiente; há uma morte à queima-roupa e rompe-se a bolsa (a vida querendo surgir em meio à luta).
Tudo será sempre igual
Já no hospital, enquanto a patroa (como ela diz ser) não sabe sequer a data de aniversário de Cleo durante o atendimento, a posição de salvadores escancara-se como de faixada. Sr. Antonio (Fernando Grediaga) surge como um ombro, mas recusa-se a acompanhar o parto, colocando a decisão nas costas da obstetra – que logo o desmente.
A cena que se segue (a do parto) é de uma simbologia assustadora: Além de se denunciar o distanciamento daqueles que diziam Cleo como sendo da família – algo tão bem trabalhado por Anna Muylaert e o seu Que Horas Ela Volta? –, fomenta uma discussão sobre violência obstétrica que perdura até hoje, especialmente com relação a minorias, a mulheres de grupos étnicos não-brancos e de classe social baixa. A formalidade utilizada por Cuarón retrata uma frieza quase mecânica, fato que, ao contrário de tornar o filme impessoal, sedimenta uma relação de repulsa por parte do diretor, aproximando o que se vê do público e demonstrando claramente que o separatismo social nasce a partir exatamente do nascimento.
É tudo tão complexo que Fermín (Jorge Antonio Guerrero), entusiasta das artes marciais, pouco compreende o valor do que pratica. Aliás, seu sentimento é tão individualista que, por mais que seja visto em meio a tantos praticando os mesmos movimentos – tudo em perfeita sincronia –, ele é incapaz de se ver em um mundo conjunto. Se, na loja de berços, sua luta se dá contra apenas um alguém, ele sequer consegue enxergar a Cleo como parte de algo maior: uma família. Mas em quais condições Fermín e Cleo cresceram para compreender tudo aquilo? Se a morte sempre esteve mais próxima para eles do que a vida, como eles conseguiriam imaginar uma nova vida como algo bom? “Eu não a queria. Eu não a queria. Eu não queria que ela nascesse.”, confessa Cleo mais à frente.
Se é uma discussão que já pode render debates em tantas direções, ao mesmo tempo fica consolidado o mal que somente mulheres passam e que Cuarón trata de uma forma extremamente valorosa. Não é, de fato, seu lugar de fala, mas, tendo consciência desse território, o diretor de Filhos da Esperança (2006) – filme que tem reflexos claros aqui –, constrói sua visão através do viés da empatia.
A força das imagens
É tudo muito vigoroso e ao mesmo tempo poético, como se todas as imagens – que parecem ter saído do trabalho do fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado –, gritassem para dizer algo. E, se todas não dizem, a maioria o faz com um grau metafórico tão bonito que a ordem no caos é prontamente estabelecida. Do professor que, de um gesto simples, demonstra a tantos sobre equilíbrio – e que ganha ares fantasiosos que vão do seu figurino a uma ventania que levanta uma poeira quase mágica – a um homem bala que voa alguns metros e cai na rede de proteção, relacionando todos daquele lugar à dificuldade de voar de fato, ainda mais por ser uma cena que segue a uma do filme Sem Rumo no Espaço (de John Sturges, 1969) com astronautas em órbita. Aliás, antes do homem-bala, Cleo ainda passa por uma criança que, com um balde na cabeça, finge ser um avião, desviando de poças de lama que refletem o céu.
Essa força das imagens de Cuarón, que já havia sido demonstrada especialmente em Gravidade (2013), elimina a necessidade de muitos diálogos. A exposição excessiva a partir de falas em Roma é nula. Se Cleo consegue se equilibrar junto ao professor, mesmo sem jamais ter praticado artes marciais, é algo que pode remeter à sua vida entre dois mundos, seu equilíbrio entre duas partes de um todo completamente partido – assim como aquele fantasioso homem vendado, que visita aquela localidade somente de vez em quando.
A dualidade está, então, presente novamente (e sempre) e, algumas vezes, é perversa, vide a situação de perder um filho e logo na sequência ser perguntada sobre o carro novo – pequeno, para aludir da condição financeira ao bebê nascido morto. Antes disso, se a Sra. Sofía (Marina de Tavira) comenta sobre seu divórcio, ao fundo um casal está em sua cerimônia de casamento. Tudo se transformando em começos e recomeços, mas sempre denunciando uma distância predatória entre patrões e subordinados.
A diversidade de interpretações através da estética
“Te amamos muito, Cleo. Te amamos muito, muito.”, diz a Sra. Sofía, numa declaração que precede em poucos minutos a subordinada atendendo a uma ligação e limpando o telefone na roupa antes de o passar para a patroa. As situações de Casa Grande e Senzala são tão claras que o filme recebe contornos muitas vezes pessimistas, o que funciona como um alarme visceral em meio à beleza estética da produção.
Roma, além de ser uma intensa memória através da qual Cuarón utiliza de uma impessoalidade técnica para tornar seu filme mais abrangente e formalizar uma situação enraizada, é, também, um retrato de países que aprenderam a desigualdade social e o racismo devido ao genocídio dos seus habitantes originais. Essa abordagem, exposta já no início, quando Cleo e Adela (Nancy García García) conversam no dialeto mixteca e o pequeno Pepe (Marco Graf) diz impositivamente “Não fale assim.”, sedimenta mais um pouco da empatia de Cuarón, que entende o espanhol como a língua de colonizadores (assim como o português que dá fruto a esse texto).
Há uma revolução lá fora ao passo que a alma vai sendo demolida por dentro. Enquanto isso, abutres sobrevoam a carcaça de Roma – que é também o nome do bairro localizado no distrito de Cuauhtémoc, na capital do México, onde cresceu Cuarón e onde se passa boa parte do filme. Na verdade, seu nome original diz muito: Colônia Roma. Mas também diz pouco. Por que Roma (o filme) não pode ser reduzido a significados absolutos. É uma obra subjetiva dentro de uma história muito clara. Cleo simboliza tanta gente que a capacidade técnica do diretor mexicano jamais poderia ter sido utilizada para tornar tudo próximo e pessoal. Porque é da impessoalidade de uma estética quase cromada, iluminada de maneira perfeccionista, que surge a diversidade de interpretações. Fechar o filme de forma muito mais íntima poderia torná-lo hermético ou direto demais, pertencente a uma única memória.
A escolha de uma vida
Roma, agora, pertence a todos. Deixa de ser um bairro ou a capital de um país e passa a ser um mundo que diz respeito a cada universo individual de um jeito diferente. Cleo pode ser uma divindade do Lares familiares. Ela pode ser a própria Aca Larência. Não importa se, ao final, o máximo que ela consegue subir é em seu quartinho nos fundos, uma espécie de sótão (e, lá em cima, sobrevoam mais aviões). A noção de que, se não houver atitude, tudo continuará exatamente como sempre está ali em um devaneio cíclico.
“Olha só: Gostei de estar morta.”, diz Cleo. Ela é humana e divindade; é vida e morte; é o equilíbrio entre mundos tão distantes e tão próximos que passa a ser de uma crueldade sem tamanho a existência dessa divisão. Aos olhos de Cuarón, parte do mundo, recheada por muitos que conseguem voar, é de abutres. Ou, em uma visão mais ampla, cada um tem um “quê” de abutre dentro de si e só resta a escolha entre viver por carcaças (do sofrimento e da morte de outros) ou lutar para que todos possam voar (mesmo que carregados, abraçados).
Claro que uma escolha só é possível quando existe a chance de escolher. E isso não poderia estar mais claro em Roma.
Crítica dedicada à Laísa Trojaike