Por que os europeus comiam pó de múmias egípcias?
Por Augusto Dala Costa • Editado por Luciana Zaramela | •
Voltando apenas alguns séculos no passado, podemos ver que a egiptomania ultrapassava alguns limites impensáveis nos tempos atuais — além de festas vitorianas onde múmias eram desenroladas de suas bandagens, alguns europeus simplesmente comiam os restos mortais preservados e mumificados, supostamente ajudando a curar certas condições ou mesmo aliviar uma simples dor de cabeça.
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Embora seja bizarro pensar que nossos antepassados acreditavam piamente que o canibalismo podia ajudar contra doenças, precisamos lembrar que os tratamentos antes da medicina moderna eram precários e bastante experimentais. A crença de que o pó de múmia tinha propriedades curativas veio da Idade Média, levando pessoas a consumir preparados com gosto horrível.
Tanto ricos quanto pobres utilizavam o produto conhecido como “Mumia”, disponível em lojas de apotecários (médicos curandeiros do passado), criados a partir das múmias egípcias trazidas à Europa, ao menos até o banimento dessa importação pelo Egito, no século XVI. Começando no século XII, a prescrição do pó seguiu por cerca de 500 anos, mas outras práticas macabras a acompanhavam.
Em um mundo ainda sem antibióticos, crânios, ossos e carne ralados eram usados no combate à dor de cabeça, inchaço e até peste bubônica. Nem todo profissional da saúde pensava assim, como Guy de la Fontaine, médico real que não via múmias como remédios válidos e notou os restos dissecados sendo forjados em Alexandria, usando corpos de camponeses recém-falecidos, em 1564. Havia demanda, e continuaria havendo até o século XVIII.
Da medicina às festas
Alguns médicos dispensavam as múmias com uma mudança mais macabra, dizendo que sangue e carne frescos tinham uma vitalidade mais saudável e preferível do que os restos mais antigos. Isso chegava à mais alta realeza, com o inglês Rei Charles II (1630 – 1685) consumindo remédios feitos com crânios humanos após um derrame e médicos ainda prescrevendo a substância para condições neurológicas até 1909.
Mas a realeza e as classes mais altas seguiam acreditando no poder curativo das múmias, especialmente porque muitos médicos afirmavam que todas eram feitas de faraós falecidos, ou seja, a realeza do passado — algo que parecia apropriado aos nobres. No século XIX, as pessoas já não consumiam mais múmias, mas elas continuaram sendo um atrativo hipnotizante — desta vez, servindo como entretenimento em festas privadas.
A primeira expedição de Napoleão para o Egito, em 1789, atiçou a curiosidade dos europeus e permitiu que os viajantes do século XIX trouxessem os restos preservados de volta ao seu continente, desta vez comprando múmias diretamente de vendedores de rua.
Os primeiros eventos de “desenrolamento” tinham, ainda, algum verniz médico, como o do cirurgião Thomas Pettigrew, no Colégio Real de Cirurgiões na Inglaterra de 1834. Autópsias e cirurgias eram feitas em público na época, então abrir uma múmia parecia apenas mais uma curiosidade médica.
Logo, o ensejo de pesquisa foi abandonado, quando os mais ricos passaram a gostar de entreter os convidados com um desenrolar de múmia — uma forma de exibir o quão endinheirados eram, o suficiente para comprar um item como esse. A emoção de ver pele e ossos secos surgindo sob as bandagens levou os vitorianos à loucura até o início do século XX, quando a atividade passou a ser vista com maus olhos, à sombra da destruição de artefatos arqueológicos.
Múmias na modernidade
Após passar o furor do desenrolar de múmias, outro tipo de egiptomania surgiu — a descoberta da tumba de Tutancâmon, em 1922, inspirou até mesmo a Art Déco, estilo arquitetônico e visual do início do século. Em 1923, a morte súbita do Lord Carnarvon, patrocinador da expedição ao túmulo de Tutancâmon, levou à superstição da “maldição da múmia”, mesmo que o britânico tenha falecido por causas naturais. A partir daí, a distância de múmias passou a ser preferível.
O primeiro desenrolar de múmia desde 1908 se deu em 2016, feito pelo egiptólogo John J. Johnston. Uma mistura de ciência e show, a mostra foi uma imersão em como seria estar presente num desenrolar vitoriano, mas ainda foi considerada de péssimo gosto — realizada no Hospital St. Bart, em Londres, ela incluiu como trilha sonora Walk like an Egyptian (ande como um egípcio, em tradução livre), música da banda The Bangles, e oferta de gin aos participantes. A múmia não passava de um ator envolto em bandagens.
Em um teor mais sério, o mercado negro do tráfico de antiguidades ainda existe, e movimenta estimados US$ 3 bilhões (cerca de R$ 14,40 bilhões) atualmente, incluindo múmias e artefatos egípcios. Nos dias de hoje, nenhum arqueólogo sério abriria uma múmia em público, e nenhum médico indicaria consumir qualquer resto humano preservado. Isso não impede que a ganância leve ao uso de antigos humanos preservados como mercadoria, um problema que a humanidade ainda há de resolver.
Fonte: The Conversation