Por que Hiroshima é habitável e Chernobyl não?
Por Danielle Cassita • Editado por Patricia Gnipper |
A madrugada de 26 de abril de 1986 ficou marcada na história como palco do pior desastre nuclear que já ocorreu: foi naquele dia que explodiu o reator nº 4 da Usina Nuclear de Chernobyl, que hoje faz parte do território da Ucrânia, causando a morte de trabalhadores e liberando materiais radioativos que se espalharam pela Europa. Hoje, 35 anos após o acidente, ainda não é seguro viver por lá — ao contrário da cidade de Hiroshima, que foi atingida por uma bomba atômica em 1945. Mas, afinal, por que Hiroshima é habitável e Chernobyl não?
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Cerca de 40 anos antes do acidente na usina, o mundo havia testemunhado o poder destrutivo das bombas atômicas: em 6 de agosto de 1945, os Estados Unidos liberaram a bomba de urânio, apelidada de “Little Boy”, sobre Hiroshima. Segundo estimativas da Radiation Effects Research Foundation, que levam em conta as mortes pela força e calor das explosões e pela exposição à radiação, mais de 100 mil pessoas morreram em Hiroshima; depois, o ataque foi repetido em Nagasaki e matou mais 80 mil pessoas. Os sobreviventes dos bombardeios tiveram que conviver com as sequelas e o trauma — eles foram chamados de “hibakusha”, termo usado para se referir àqueles que foram afetados pelas bombas.
Já no caso de Chernobyl, falhas humanas somadas a erros de projeto ocasionaram outra tragédia: no dia do acidente, os operadores da usina nuclear iam aproveitar uma manutenção de rotina para testar se o reator poderia ser resfriado mesmo se faltasse energia na usina. Para isso, eles desligaram os geradores de emergência e, depois, reduziram a potência do reator. O problema, contudo, é que a estrutura apresentou comportamento instável que foi seguida de um pico de energia. Com isso, iniciou-se uma reação em cadeia que causou uma série de explosões na parte interna do reator.
Enquanto isso, com o superaquecimento causado pela explosão, o urânio que ficava no interior do reator derreteu e escapou das barreiras de proteção. Na ocasião, o acidente causou a morte de funcionários que trabalhavam na usina e exigiu os esforços de milhares de soviéticos para tentar conter o incêndio e o espalhamento da radiação — e, embora os níveis radioativos continuem altos demais para que seja possível viver na cidade de Pripyat, que ficava a 3 km da usina, a região continua um dos destinos turísticos mais populares do mundo.
Por que Hiroshima é habitável e Chernobyl não?
Pripyat foi evacuada às pressas nas horas seguintes após o acidente e, hoje, a antiga cidade faz parte de uma zona de exclusão que se estende por 2,8 mil quilômetros quadrados em torno da usina. Atualmente, Pripyat é uma cidade fantasma: prédios, vilarejos e outras construções seguem abandonadas, e os pertences dos civis ficaram para trás. Mesmo com o risco, alguns moradores decidiram, por conta própria, voltar para suas casas.
Para grande parte dos especialistas, o cenário é um só: as áreas que fazem parte da zona de exclusão de Chernobyl continuam bastante contaminadas com isótopos radioativos, como o césio-137, estrôncio-90 e iodo-131. Portanto, mesmo que turistas sigam se aventurando para explorar o local por breves períodos e com várias restrições, viver por lá não é nada seguro — mas, enquanto isso, Hiroshima hoje é como qualquer outra grande cidade japonesa, com moradores e turistas que viajam para lá normalmente.
Para entender o que há por trás de cenários tão diferentes nessas cidades, é preciso levar em conta alguns fatores. O primeiro deles é a quantidade de material radioativo que foi usado em cada caso: com a explosão, o reator 4 liberou pelo menos sete toneladas de material radioativo para a atmosfera. Em comparação, a bomba Little Boy tinha cerca de 60 kg de urânio enriquecido em seu interior; deste total, uma quantidade mínima foi usada durante a reação que arrasou Hiroshima.
Além disso, é importante lembrar que as bombas liberadas no Japão foram detonadas ainda no ar, quando estavam a cerca de 500 m acima da superfície. Por isso, parte dos detritos radioativos foram dispersados pela nuvem em forma de cogumelo que se formou e não chegaram a cair no solo — mas, logo depois da explosão, uma parte do material nuclear foi para a atmosfera e se misturou com o calor dos incêndios causados pelo ataque, o que criou uma chuva negra e tóxica. Essa chuva de água radioativa era capaz de manchar a pele e até a estrutura de construções, e envenenou quem ingeriu a água contaminada.
Já no caso de Chernobyl, o reator derreteu e liberou urânio, o que desencadeou a ativação de nêutrons. Trata-se de um processo em que a radiação dessas partículas induz também a radioatividade em outros materiais. Este é o único jeito comum de tornar radioativo um material que seja estável, e resultou na contaminação do solo. Hiroshima escapou deste efeito devido à altitude da detonação da bomba, mas o césio-137 e outros isótopos continuam impregnados no solo próximo da antiga usina — prova disso é a chamada Floresta Vermelha, a 10 km da usina, onde os níveis deles foram registrados 20 vezes acima da contaminação de Hiroshima e Nagasaki.
O que a radiação pode causar
Hoje, as grandes matrizes energéticas de que dispomos atuam com processos químicos e físicos — este último é o caso da fusão e da fissão nuclear, que são capazes de produzir enormes quantidades de energia a partir de processos subatômicos. Em linhas gerais, a fusão ocorre quando duas partículas subatômicas se unem para formar uma partícula nova e mais pesada. Esse processo requer muita energia, resulta em quantidades ainda maiores e é o que acontece no Sol e nas outras estrelas.
Já a fissão é o processo em que um nêutron é disparado para um átomo instável. Esse átomo é forçado a entrar em um estado de excitação, que faz com que ele se separe em outros menores e libere uma enorme quantidade de energia enquanto faz isso; assim, esse processo continua em uma reação em cadeia. Geralmente, o urânio e o plutônio são usados para as reações de fissão, porque podem iniciar o processo com mais facilidade e proporcionam melhor controle.
Em Chernobyl, a explosão inicial matou dois funcionários da usina, e quase 30 bombeiros e trabalhadores que atuavam na limpeza dos destroços morreram nos três primeiros meses pelos efeitos da síndrome aguda da radiação, que ocorre quando o organismo é exposto a altos níveis de radiação. Após o acidente, foram registrados pelo menos 1.800 casos de câncer de tireoide em crianças que tinham entre 0 e 14 anos quando tudo aconteceu, uma taxa muito mais elevada que o normal.
Os altos níveis de radiação que ainda ocorrem lá podem ser extremamente prejudiciais tanto para humanos quanto para outros seres vivos. Além de o material radioativo em Chernobyl ser instável, ele está constantemente emitindo partículas e ondas altamente energéticas, que são capazes de destruir facilmente as estruturas celulares e de produzir compostos químicos quando atacam o maquinário delas.
Claro, as células conseguem substituir a maior parte das suas estruturas se for necessário, mas isso não se aplica ao DNA: doses mais altas de radiação podem alterar essa molécula, enquanto doses menores causam mutações responsáveis por alterar as funções celulares. Isso pode desencadear a multiplicação descontrolada de células, que se espalham para outras partes do corpo, causando o câncer.
E os animais e plantas em Chernobyl?
O impacto inicial do acidente foi intenso: uma floresta de pinheiros próxima recebeu tanta radiação que morreu imediatamente, e as folhas adquiriram coloração vermelha, o que resultou no apelido de "Floresta Vermelha". Poucos animais sobreviveram ao pico de radiação e, devido ao tempo que alguns compostos radioativos levam para decair e desaparecer, era esperado que a região ficasse sem seres vivos por séculos. Contudo, não é isso que vemos atualmente, já que há animais e plantas vivendo na zona de exclusão.
Como as células e sistemas dos organismos dos animais são extremamente específicos e inflexíveis, os efeitos que descrevemos (e outros) podem ser fatais. Mesmo assim, é possível observar ursos marrons, bisões, lobos, cavalos e diversas outras espécies de animais vivendo por lá sem apresentar tantas consequências da radiação. Um estudo que investigou os anfíbios em Chernobyl detectou populações abundantes por lá e sinais que podem sugerir a ocorrência de respostas adaptativas ao ambiente radioativo, como sapos de pele mais escura do que aqueles que vivem fora da região.
As plantas, enquanto isso, se mostram ainda mais resilientes às condições — todas, exceto as que eram mais vulneráveis e expostas, sobreviveram ao ocorrido, tanto que três anos foram suficientes para a recuperação daquelas que viviam nas áreas mais radioativas da zona de exclusão. Muito disso se deve à capacidade adaptativa delas: como não consegue se mover, a vegetação precisa se adaptar ao ambiente e, portanto, às condições dele.
Elas conseguem substituir células mortas e tecidos com muito mais facilidade do que os animais, e mesmo que surjam tumores, as paredes que envolvem as células as protegem da multiplicação descontrolada. Hoje, algumas plantas presentes na região parecem estar usando alguns mecanismos para proteger o DNA e deixá-lo mais resistente, junto de sistemas de reparação prontos para "consertá-lo" se for necessário. É possível que isso ocorra porque, quando os primeiros vegetais estavam evoluindo, o ambiente tinha muito mais radiação do que tem hoje, então elas podem estar voltando para adaptações parecidas com as daquela época.
No fim das contas, embora haja seres vivos dominando a região abandonada, é difícil dizer quando os arredores de Chernobyl poderão abrigar moradores outra vez, porque as estimativas são variadas: alguns especialistas estimam que seriam necessários pelo menos 180 anos para a anulação dos efeitos radioativos, enquanto outros propõem que ainda vai levar 20 mil anos para que a zona próxima da antiga usina seja habitável novamente.
Fonte: Gizmodo, The Guardian, BBC (1, 2), National Geographic, The Conversation, Energy, Columbia, Ufpel