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Govtechs comemoram nova legislação enquanto buscam por financiamento e aceitação

Por| Editado por Claudio Yuge | 26 de Outubro de 2021 às 19h20

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Marcelo Camargo/Ag. Brasil
Marcelo Camargo/Ag. Brasil

Imagine o cenário 1: você tem uma papelaria e a prefeitura abre uma licitação para comprar material de escritório. É uma chance para ganhar um bom dinheiro, já que a compra será na casa dos milhares de produtos. Mas você não ficou sabendo disso porque não acompanha o diário oficial, e deixou a chance passar. Agora o cenário 2: tudo igual ao anterior, mas aqui uma startup criou um site que alerta empresas fornecedoras sobre licitações para que possam concorrer a tempo. Legal, certo? Pois é isso que uma govtech faz, de forma bem resumida.

Essas empresas usam sua inovação a serviço do poder público, e por tabela, da sociedade também. Trazem agilidade, flexibilidade, segurança e transparência a diversos processos, da burocracia administrativa a ações na justiça, de soluções ambientais a atendimento social. Neste ano, foram agraciadas com três novas leis que facilitarão seu desenvolvimento. Mas como nem tudo é fácil nesta vida, também enfrentam problemas como a má vontade de alguns agentes dos governos e o ainda pouco financiamento externo, se comparado a outros negócios.

Primeiro, falemos das boas notícias, como as três leis que mencionamos acima. A mais importante foi o Marco Legal das Startups (182/2021), que em junho regulamentou todo este ecossistema, mas para as govtechs em particular, firmou os meios de contratação de soluções inovadoras pelo estado. A segunda é a Lei de Licitações e Contratos Administrativos (14.133/2021), de abril, que consolida o meio digital como regra nas contratações públicas. Já a terceira foi a Lei de Governo Digital (14.129/2021), que desde março dispõe de normas para a digitalização dos governos, além de promover laboratórios de inovação para experimentar soluções que tragam mais eficiência pública.

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Uma grande vantagem burocrática para as govtechs é que essas leis trazem outros meios para oferecerem seus serviços aos governos, como o Sistema de Registro de Preços, menos burocrático que a licitação tradicional. "É difícil contratar via licitação. [Dessa forma] tem que ser uma coisa muito quadradinha, tem que ter vários ofertantes. Mas, na inovação, por definição só você presta aquele serviço. Então como faz [para haver concorrência] quando só você tem aquilo?", indaga Adriano Pitoli, diretor da KPTL que gerencia o primeiro fundo dedicado exclusivamente a govtechs no Brasil, feito em parceria com a Cedro Capital.

Mercado ainda pequeno, mas promissor

O BrazilLab, principal hub de govtechs do Brasil, identificou em um estudo recente 1.500 startups brasileiras em atividade capazes de vender seus produtos e serviços a governos — negócios em educação (edtechs) e saúde (healthtechs) são exemplos disso. O levantamento foi feito com informações da Associação Brasileira de Startups (ABStartups). Destas, 80 já vendem para o poder público de forma recorrente. É um número bem pequeno, já que no país existem hoje 12 mil startups de todos os tipos.

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Por outro lado, isso mostra que há muita oportunidade para as que ainda não trabalham com o setor estatal, principalmente para o restante das 1.500 empresas com este potencial. E atualmente o Brasil, a despeito de reduções recentes de verbas para a ciência e tecnologia nos últimos anos, curiosamente está mais aberto para a tecnologia das govtechs. Uma pesquisa do Banco de Desenvolvimento da América Latina (CAF) com a Oxford Insights colocou o Brasil em quarto lugar entre os países melhor posicionados para este tipo de ecossistema na Ibero-América (América Latina, Portugal e Espanha).

Como de praxe nas startups brasileiras, o setor de govtechs é dominado pela tendência do SaaS (software como serviço, em inglês), isto é, as empresas oferecem plataformas digitais para outras empresas em sistema de assinatura. São exemplos disso a Gesuas, que faz gestão de atendimento a famílias em vulnerabilidade social; a Sipremo, que tem uma solução de previsão e detalhamento de possíveis desastres naturais e suas repercussões; e a Gove, startup de inteligência voltada a finanças municipais. Esta última recebeu investimento de seed R$ 8 milhões do fundo Astella no final de 2020.

Outra govtech beneficiada pela Astella foi a Aprova Digital, que recebeu R$ 4 milhões também em rodada seed. O software da empresa facilita a entrada e saída de documentação em processos como licenciamentos de obras e abertura de empresas. Outro case parecido é o Portal de Compras Públicas, que recebeu aporte de R$ 2,5 milhões da Cedro em 2020. É um marketplace para fornecedores de materiais e serviços participarem de pregões eletrônicos, já presente em mais de 2.000 municípios, quase 40% do total nacional. Ambas estão em um bom momento e se encaixam bem na veia da eficiência pública digitalizada promovida pelas novas leis do setor.

Uma coisa pouco comentada é que uma govtech nem sempre trabalha exclusivamente com governos. É possível, sim, que elas prestem serviço a outras empresas. É o caso da GreenPlat, que reduz o tempo e aumenta a eficiência do tratamento do lixo em cerca de 35% com a emissão digital de relatórios e licenças via rede blockchain. Ela tem dois serviços hoje: a PlataformaVerde, que atende ao setor privado com clientes como iFood, Renault e AmBev; e a e CTR-e, para entidades públicas. Já o Portal de Compras Públicas usa um interessante modelo freemium, onde as prefeituras não pagam nada, e sim as empresas que usam os recursos mais avançados da plataforma. "A operação inteira é custeada por uma asssinatura do fornecedor que participa do processo licitatório. Mas só o aviso de licitação é gratuito", explica o CEO, Leonardo Ladeira.

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Da falta de grana à corrupção

De acordo com Guilherme Dominguez, CEO do BrazilLab, o mercado brasileiro de govtechs ainda sofre com dois grandes problemas: a falta de financiamento externo e a pouca alfabetização digital da maior parte do serviço público. No primeiro caso, ainda vemos poucos aportes de peso; para efeito de comparação, a Rappi recebeu um aporte de US$ 500 milhões (R$ 2,7 bilhões) em julho, quase 350 vezes o montante de R$ 8 milhões recebidos pela Gove no ano passado. Não por acaso, muitas govtechs do país ainda estão em fase inicial (seed).

O segundo problema, da resistência do poder público, tem uma série de origens. "Tem muita gente com resistência à contratacao de tecnologia com medo de perder o emprego ou que ela revele algum esquema de corrupção, porque os processos ficam mais transparentes", diz Dominguez, que ainda destaca os ventos políticos como fatores de risco. "A cada dois anos tem eleições no Brasil. E sempre há cargos de comissão, e [nesta troca de pessoal] projetos que avançaram acabam voltando para trás. Mas estamos investindo em capacitação dos servidores. Essa oferta [para govtechs] está crescente e tenho visto muito interesse do poder público".

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Gabriel Sávio, CEO da Sipremo, foi um exemplo para os dois casos. Sua startup ainda não recebeu grandes aportes e passou por dificuldades para fechar contratos com os governos brasileiros, parte por causa da pandemia de covid, parte por desinteresse dos gestores. Hoje, a empresa passou a focar mais a prestar seu serviço a empresas que possam usar a predição de desastres para evitar perdas e problemas no negócio, além de buscar clientes no exterior, como o condado de Miami (EUA). "Íamos fechar com municípios daqui mas, para eles, a lei de aquisição de tecnologia é também a mesma para comprar farinha de pão. Mas essa renovada da legislação fez com que a gente voltasse a olhar para os governos com melhores olhos", resume Sávio.

Igor Guadalupe, diretor-executivo do Gesuas, concorda. "Por mais que a gente tenha hoje novas leis, a gente sabe que isso demora a pegar. A tendência é à gestão pública colocar no mesmo bolo tecnologias inovadoras com soluções comuns e padronizadas. Isso deixa um clima de desconfiança que prejudica não só a gestão pública, que demora a acessar tecnologias que poderiam impulsioná-la, como dificulta a vida das govtechs para se firmar enquanto negócio. A gente também passa por uma mudança de percepção dos investidores. Apesar de o governo ser o maior comprador do Brasil, há ainda um ranço que para você vender para o governo, tem que ter feito uma coisa errada. Mas isso está mudando".

Por conta disso, as govtechs ainda têm uma longa batalha no horizonte para mudar a cultura de todos os envolvidos no seu ecossistema: governos, investidores e até a população em geral. Mas não se engane: como qualquer startup, elas também sonham com o exit, isto é, aquele momento em que é comprada por uma empresa maior ou fica tão grande que pode vender ações na Bolsa. A diferença é que elas foram forjadas em uma função social mais ampla. "Pensamos como startup, mas não planejamos nosso futuro. Nós somos uma empresa que tem um propósito muito grande, que é o nosso software. Se não viermos como ente privado de tecnologia para ajudar o governo brasileiro a resolver as suas demandas, ele não vai conseguir na mesma velocidade quando faz sozinho", define Chicko Sousa, fundador da GreenPlat.

Apesar dos problemas dos últimos anos, o otimismo gerado pela nova legislação é grande. "O ecossistema tem apresentado diversas startups com resultados robustos. Ao mesmo tempo, o ambiente legal está melhorando, criando um ciclo virtuoso da valorização das govtechs por parte dos governos", diz Rodolfo Fiori, cofundador da Gove. "O mercado B2G [de empresa para governo] ainda está em fase inicial, evoluindo e vai se expandir muito. Estamos vivendo apenas o início de um esforço coletivo entre startups e governos, mas é preciso envolver outros stakeholders [interessados] nessa transformação, como instituições, universidades, empresas e investidores", completa o CEO do Aprova Digital, Marco Zanatta.