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Heróis sem capa: quem está por trás das legendas das séries que tanto amamos?

Por| 22 de Maio de 2020 às 17h10

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odgers interim
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Quem não gosta de fazer uma pipoca, esparramar-se no sofá e colocar um filme ou uma série para assistir? Mas para que aquele conteúdo chegue compreensível até você, há toda uma equipe por trás, traduzindo o conteúdo original e criando e sincronizando as legendas. Sem esses profissionais, não conseguiríamos compreender nada de um conteúdo produzido originalmente numa língua que não é a nossa. Pensando nisso, o Canaltech buscou compreender como é essa profissão e como é todo o processo até que as legendas cheguem às nossas telas.

Para entender melhor como é essa profissão, conversamos com a supervisora de Processamento Digital, jornalista e autônoma em legendagem e tradução Raissa Alencar Silva, e com o tradutor Eduardo Godarth, formado em Letras Inglês/Português. Os profissionais explicam que há faculdade de tradução e pós-graduação para legendagem, além da formação mais convencional para trabalhar nessa área ser Letras, mas é um mercado que conta com muitos freelancers de outras áreas, até de programação.

O nome oficial para a profissão seria tradutor, mas é algo que se encaixa mais quando se trata de livros e artigos. "Legendagem é uma área um pouco à parte, que exige outras competências, além de saber traduzir", diz Raissa. "Como os tradutores frequentemente lidam com clientes de outros países, é comum usarem o nome da profissão no idioma estrangeiro, como 'Subtitle Translator' ou 'Subtitler', em inglês", ressalta Eduardo.

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Muitas pessoas da área da legendagem são freelancers, e a rotina normalmente envolve passar 12h na frente do computador, embora haja "outros dias mais tranquilos". O trabalho pode envolver: marcação, ou seja, ajuste do tempo em que cada legenda fica na tela; transcrição do que foi dito; tradução do que foi dito e adaptação para a duração da legenda na tela. A entrega do resultado pode ser feita em um arquivo que contém apenas a legenda, frequentemente no formato SRT (arquivos de texto simples que indicam ao player quando determinado texto será apresentado e quando ele sumirá da tela), ou em um arquivo de vídeo, já com a legenda queimada nele. Neste segundo caso, qualquer erro na legenda exigirá que o vídeo seja queimado de novo.

Os desafios da profissão

Os principais desafios, apontados pelos próprios profissionais, são os prazos apertados, a qualidade do material e a remuneração. Eles contam que às vezes conseguem bons prazos, podendo dar mais atenção, ler manuais, buscar referências, mas ainda assim já pegaram trabalhos de um dia para o outro, tendo que virar a madrugada, seja por urgência do conteúdo ou falta de organização. Normalmente, quando é falta de organização, a empresa sempre os procura de novo com mais trabalhos assim.

Os profissionais ainda contam que sempre pedem o vídeo (que vem em baixa qualidade e marca d'agua da empresa) e um script, lista de diálogo ou legenda de referência. Quando o filme é mais independente ou não vem de produtoras grandes, por exemplo, o script pode vir com falas erradas, que o ator improvisou, com falas faltando, incompleto. "Cada trabalho pode ser uma experiência completamente diferente, com desafios que são únicos e você precisa dar um jeito, procurar em outras fontes, ficar insistindo, o que às vezes é bem complicado", conta Raissa.

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No entanto, o grande desafio dessa profissão é a remuneração, uma vez que mesmo tendo uma tabela própria, os freelancers sempre acabam abrindo mão e abaixando um pouco o preço para manter um fluxo de trabalho maior. "Lembro que no começo recebia R$ 1,00 por minuto para fazer as legendas completas (sincronia e tradução), o valor pago é normalmente por tempo do filme, então em um filme de 1h30m, que levava em média três, quatro dias de trabalho, eu recebia R$ 90,00. Como eu estava aprendendo, a qualidade não era lá essas coisas, mas era bem complicado. Hoje, até posso aceitar um valor assim para um trabalho teste, mas só se estiver sem opções", relembra e ressalta a supervisora.

Raissa rabalha há sete anos no mercado de Video On Demand e conta que já recebeu um salário em uma legenda e R$ 100 em outra por acharem que era "fácil demais". Segundo ela, como para fazer legenda não há a obrigatoriedade de uma qualificação específica, há muita concorrência e muita gente cobrando preços abaixo do mercado. Eduardo concorda com essa visão. Para ele, do ponto de vista do mercado, a primeira dificuldade é entrar no meio e conseguir os primeiros trabalhos. Depois de estabelecido, o profissional pode achar difícil definir um preço competitivo, pois o mercado está saturado de "pessoas que se acham capazes de desempenhar a profissão só porque sabem um segundo idioma, mas não produzem com qualidade aceitável e cobram preços excessivamente baixos".

O tradutor ainda ressalta a necessidade achar um equilíbrio entre duas pressões: fazer com que o texto soe natural e o mais fiel possível ao que foi dito, além de lidar com as limitações de espaço impostas pelo meio. A Netflix, por exemplo, exige que haja no máximo 42 caracteres por linha e 17 caracteres por segundo, como pode ser visto no site oficial. "Sendo assim, gosto de pensar que a legendagem está no meio do caminho entre a tradução artística e a tradução técnica", afirma.

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Questionado sobre o reconhecimento de sua profissão, Eduardo opina: "Por um lado, o bom legendador, assim como qualquer outro tradutor, é aquele que não chama atenção para si. As pessoas costumam lembrar do tradutor quando ele erra, não quando ele acerta. Por outro lado, é necessário reconhecer o trabalho de qualquer profissional, quando é bem feito. Algumas plataformas, como a Netflix, apresentam o nome do tradutor ao final dos programas. Outras, não. Acredito que a questão do reconhecimento esteja melhorando, especialmente para os ramos mais artísticos da tradução, e esteja em um bom caminho".

Independência é vantajosa?

Com isso, ainda fica uma questão no ar: qual a diferença de ser um profissional independente e fazer as legendas para uma determinada empresa? Há uma opção mais vantajosa? Segundo os subtitlers entrevistados, nos dois casos existem ônus e bônus: fazer um trabalho para uma mesma empresa garante um bom fluxo, mas também acostuma muito fácil, acaba se tornando um trabalho mais automático. Normalmente, as empresas têm conteúdos muito específicos e você acaba fazendo mais do mesmo, mas garante uma renda fixa, de acordo com Raissa.

Por outro lado, quando se é independente, existem mais desafios, exige-se mais atenção para não confundir regras, e, normalmente, garante-se mais descobertas e aprendizados, segundo a supervisora. "Algumas empresas exigem softwares e formatos específicos ou são totalmente diferentes daquilo que você já fez, o que acaba sendo legal, pela adrenalina de aprender. Mas junto com isso, as tabelas de preços também variam e podem ser bem tristes. No final, vai do perfil da pessoa, mas acaba sendo uma função bem livre, poucas empresas exigem contratos que impedem que você faça para outros", diz.

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Para Eduardo, o profissional totalmente independente, que só lida com o cliente final, tem a vantagem de cortar os intermediários e cobrar seu próprio preço. Porém, acaba tendo que lidar mais com a parte de negociação de preços e precisa se engajar mais na procura de clientes. O profissional que trabalha para empresas recebe o preço afixado pela agência, mas tem, possivelmente, um fluxo mais garantido de trabalho. "Eu, assim como a maioria das pessoas que conheço, trabalho com uma mistura desses dois modelos, já que a maioria das empresas não exige exclusividade, até porque a maior parte de sua mão de obra é composta de freelancers", afirma.

TV x Streaming

Outra questão que vem à mente é se há muita diferença entre trabalhar para o cinema, para a TV ou para o streaming. E pelo que os profissionais dizem, há bastante. Cada plataforma tem suas regras, são manuais específicos para garantir a qualidade que esperam. Esses manuais podem ter diferença na configuração do arquivo e até regras de palavras que podem ou não ser usadas. Empresas mais especializadas e maiores contam com ferramentas que guardam palavras e frases chaves das traduções e softwares que reconhecem e já incluem isso nas legenda, poupando trabalho do tradutor de quebrar a cabeça com expressões.

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"Como faço, normalmente, legendas para streaming, as que chegam de TV são as que mais fazemos correções, porque têm censura por idade etc., enquanto as plataformas normalmente dizem para traduzir os palavrões, por exemplo. Além de outras regras que são diferentes", aponta Raissa.

Ela ainda menciona a legenda feita especialmente para TV. Basicamente, existem dois tipos: uma gerada automaticamente por softwares e uma que empresas especializadas fazem. "As pessoas usam uma máquina chamada estenótipo, que usa uma linguagem própria e você consegue escrever palavras por combinações e em tempo real, com baixa taxa de erros. Inclusive, é o que se usa em julgamentos etc., por exemplo, para acompanhar tudo. E essas empresas às vezes fazem legendas e cobram mais, mas com tempo muito menor, depois só passam por uma revisão e adequação desses arquivos".

E quanto à dublagem? Bem, segundo Eduardo, na maior parte das vezes, essas profissões não conversam. "É comum que empresas diferentes se responsabilizem pela legendagem e dublagem de um mesmo filme. Além disso, ainda que o material fonte seja o mesmo, os obstáculos de cada projeto são diferentes", explica.

O tradutor ressalta que a legendagem trabalha com a duração e a extensão do texto na tela, trocas de cena etc. Por sua vez, a dublagem trabalha com a duração exata da fala da personagem, o movimento labial e a naturalidade da língua falada. "Basta assistir a um filme dublado com as legendas ligadas para ver como as duas versões diferem. Além disso, o ator dublador tem liberdade para alterar o texto que recebe, caso ache que possa melhor adaptar o que está sendo dito à cena", conclui.

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Fansubs e pirataria

No entanto, sempre que se fala em conteúdo audiovisual, tem uma questão muito delicada chamada pirataria. Principalmente com a ascensão da internet, o acesso ao conteúdo ilegal ficou cada vez mais possível. Com isso em mente, questionamos os subtitlers para compreender se há impacto na profissão deles, uma vez que muitos amadores acabam fazendo por conta própria as legendas de um determinado conteúdo e colocando para download antes mesmo de sair a versão legendada oficial.

"Acho que o mesmo impacto que os conteúdos em geral têm com a pirataria. Mas para legenda, mesmo quando esse conteúdo existe online, a maior parte das empresas prefere pagar para garantir que seja um trabalho de qualidade. Existem manuais e regras que a gente precisa seguir pra garantir que o consumidor tenha uma boa experiência e grande parte dessas pessoas fazem mais por hobby ou diversão, então tem muitos erros e não passariam num controle de qualidade", explica Raissa.

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Eduardo conta que várias pessoas que hoje trabalham no ramo começaram a adquirir experiência fazendo fansubs, como são conhecidas as legendas feitas por fãs. "Além disso, especialmente no ramo dos animes e das séries asiáticas, traduções 'consagradas' pelas fansubs acabavam aparecendo nas versões oficiais. Hoje em dia, isso não é tão comum porque os conteúdos estrangeiros demoram menos tempo para serem localizados e disponibilizados para o público brasileiro, mas ainda é possível".

O impacto social das legendas

É interessante pensar que, quando se trata de alguns assuntos, acabamos não percebendo o tamanhodo impacto. E é assim com as legendas, porque acabamos tendo acesso a esse recurso para compreensão, e sequer paramos para pensar que existe a comunidade surda, por exemplo, que também o utiliza muito. "Por mim, a legenda seria obrigatória em todos os conteúdos, de TV ou no Streaming", aponta Raissa.

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Mas vale também ressaltar que existem legendas específicas para as pesoas surdas: "Comumente conhecido como SDH (Subtitles for the Deaf and Hard of Hearing, em inglês) ou LSE, em português. Isso faz parte de um movimento crescente de aumento de acessibilidade de produções artísticas que, a meu ver, é essencial", afirma Eduardo.

Os profissionais explicam que existem normas que mudam de empresa para empresa, mas em geral é preciso seguir um tempo mínimo de leitura, de letras por linhas, quantidade de linhas etc. Mas quando se trata do público surdo, o tempo de leitura precisa ser maior, e também contar com identificação de sons nas cenas. Por exemplo, se os personagens estão conversando no escuro e um deles é irônico, uma legenda comum só colocaria um "Sei", mas isso não expressa o que aconteceu, então os profissionais colocam "[irônico] Sei." para que a pessoa consiga captar melhor.

Raissa ainda acrescenta: "Admito que o trabalho de Closed Caption é o que mais gosto de fazer, pelo desafio de se colocar no lugar de outra pessoa. Além disso, temos também a audiodescrição e os vídeos em Libras, que têm crescido, principalmente em conteúdos nacionais".