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Crítica | Segunda temporada de Jack Ryan surpreende com mudanças inesperadas

Por| 17 de Novembro de 2019 às 09h00

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Crítica | Segunda temporada de Jack Ryan surpreende com mudanças inesperadas
Crítica | Segunda temporada de Jack Ryan surpreende com mudanças inesperadas

A primeira vez que vemos Jack Ryan em cena na segunda temporada, ele nos explica em cerca de 30 segundos porque as relações entre Estados Unidos e Venezuela são tão conturbadas: o país sul-americano tem uma das maiores reservas de petróleo do mundo, uma das maiores minas de minérios (incluindo ouro) do mundo e está geograficamente tão próximo dos EUA que seria possível acertar um míssil nuclear na capital Washington com a tecnologia existente hoje - basicamente, o país enxerga a Venezuela como uma potencial ameaça em seu próprio quintal assim como enxergou Cuba durante todo o período da Guerra Fria.

Claro, essa explicação resume muito uma situação extremamente complexa, mas a essência do problema está ali, e é jogada na sua cara sem qualquer tipo de sutileza. E, de certa forma, a segunda temporada de Jack Ryan é exatamente isso: um abandono da sutileza e dos temas complexos onde não há exatamente uma parte certa e uma parte errada, que marcaram toda a primeira temporada em troca de uma narrativa mais direta onde nos é explicado claramente quais os crimes que estão sendo cometidos e o motivo por trás deles, ainda que falhe em apresentar as sutilezas necessárias para se compreender esses temas de maneira não tão rasa.

Atenção! Daqui em diante este texto pode conter spoilers sobre Jack Ryan.

Inimigos da democracia

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Em sua segunda temporada, Jack Ryan se afasta do Oriente Médio e do tema de terrorismo como ameaça global para falar de um problema que é muito mais próxima da nossa realidade: a de golpes aplicados por políticos sedentos de poder, com o apoio das forças militares e do governo dos Estados Unidos.

Esse tipo de evento é, infelizmente, algo bastante comum na América do Sul e nos últimos 100 anos praticamente todos os países do continente passaram por algum evento do tipo, incluindo potências regionais como o Brasil, a Argentina e o Chile. E, com o mesmo tipo de evento acontecendo novamente na Bolívia este ano, é fácil cravar que isso é algo que ainda não superamos como povo e que continua sendo uma marca da política de nosso continente.

Por isso, a escolha da Venezuela como pano de fundo para essa história não é porque esse tipo de coisa é algo que só acontece ali, mas por conta do exército dos Estados Unidos enxergar o país como um ponto estratégico de defesa - e, como desde a primeira eleição de Hugo Chávez as relações entre Estados Unidos e Venezuela são um tanto conturbadas, o país se torna o cenário perfeito para uma trama envolvendo agentes da CIA.

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A narrativa se passa meses depois do fim da primeira temporada, quando Jack Ryan recusou a oferta de se tornar um agente de campo da CIA em Moscou e preferiu continuar atuando na área de análise de dados da agência, mas promovido a chefe do setor após ter sido o responsável direto pela captura do terrorista Suleiman. Devido às necessidades do cargo, Jack é designado para acompanhar um senador americano em uma visita diplomática à Venezuela.

Durante a visita, o país se encontra às vésperas de uma eleição, com o atual presidente Nicolás Reyes disputando a reeleição contra Gloria Bonalde, a esposa de um antigo desafeto político de Reyes que simplesmente “sumiu” de cena há cerca de um ano. Tanto Reyes (que é pintado como um político conservador que governa para as elites, o que o torna alguém “de direita” no nosso entendimento sobre polaridades políticas) quanto Bonalde (que é explicada como uma figura cuja campanha está baseada em programas de justiça social, o que a torna uma figura “de esquerda” de nosso atual entendimento sobre o espectro político) são personagens fictícias, mas trazem alguns traços que são comuns na vida política de toda a América do Sul: o candidato cujas políticas econômicas visam um tipo de crescimento interessante às elites financeiras, mas que, por seu carisma, possui um grande apoio popular, principalmente dos setores da classe média; e, em oposição a este, um candidato cujas políticas econômicas visam a diminuição da pobreza e do abismo existente entre a capacidade de compra das diferentes classes sociais, e que a maior parte de seu eleitorado concentrada na população mais carentes. Mesmo que as figuras em si sejam fictícias, a disputa entre eles é bastante real, e de certa forma é uma emulação da própria disputa presidencial que já ocorre nos Estados Unidos para a eleição de 2020.

A descoberta de uma série de gastos suspeitos feitos pelo governo venezuelano acaba levando Ryan ao país sul-americano, mas ele logo acaba ganhando motivos mais pessoais para continuar sua investigação, quando o senador que ele acompanhava durante a visita é morto em uma emboscada perpetrada com a ajuda da própria polícia venezuelana. Após o atentado que matou o senador, Jack se dedica a descobrir o verdadeiro culpado pela morte - e ele tem absoluta certeza que o mandante é o atual presidente do país, Nicolás Reyes.

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Durante as investigações, Jack Ryan nos relembra uma das faces mais problemáticas da democracia sul-americana: a de como ela é frágil e vulnerável ao surgimento de ditadores. A série nos mostra uma situação que, infelizmente, sempre foi (e que ainda é) comum nas democracias do continente, que é o abuso de poder por parte daqueles que foram democraticamente eleitos. Reyes não apenas utiliza a força policial e militar do país em benefício próprio, mas também contrata mercenários para cometer assassinatos de forma a estes não serem facilmente traçados de volta a ele, além de perseguir e sequestrar jornalistas, artistas, professores universitários e qualquer figura pública que lhe faça oposição, prendendo-os em um campo de concentração no meio da selva amazônica, onde são torturados e sumariamente executados.

Mais para o fim da temporada, quando percebe que está prestes a perder a eleição, Reyes manda o exército fechar as urnas e recolher todas elas sem verificação, utilizando a força do Estado que controla para dissolver as eleições e se manter no poder à força. Apesar de chocantes, todas essas atitudes de Reyes são um retrato bem claro do tipo de figura ditatorial que sempre se manteve presente na América Latina, e todos esses eventos, em maior ou menor grau, podem ser presenciados em qualquer país que sofreu um golpe para a implantação de uma ditadura, seja no Chile de Pinochet, no Brasil durante o governo militar ou, de forma bem mais recente, como o que tem acontecido nos últimos dias na Bolívia.

Outro paralelo incrivelmente acertado que Jack Ryan nos mostra é o papel dos Estados Unidos nesse tipo de governo: assim como já aconteceu em todos os golpes e ditaduras reais que ocorreram em nosso continente, os abusos cometidos para a implementação de ditaduras foram sancionados pelos Estados Unidos, e na série isso não é diferente. A história mostra que, por motivos econômicos, o governo norte-americano tem tido um papel importante em garantir a legitimidade internacional de ditaduras sul-americanas e fazer “vista grossa” às violações de direitos humanos, perseguições a opositores e à censura típica de regimes de exceção caso fazer isso garanta o acesso do país a recursos naturais que ele considera importantes. E o mesmo ocorre em Jack Ryan, onde um membro do Senado americano apoia os desmandos e abusos de poder de Reyes como forma de conseguir acesso ao tântalo, um minério raríssimo que é utilizado no desenvolvimento de processadores e materiais semicondutores.

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E é justamente na relação dos Estados Unidos com o golpe aplicado por Reyes na Venezuela que há a maior “quebra de realidade” nas tramas políticas mostradas pela série. Para manter aquela ilusão hollywoodiana de que os Estados Unidos são um país “do bem” e salvador da humanidade, essa relação entre ele e o governo venezuelano é mostrada como uma decisão de apenas um senador, que é preso como traidor após a descoberta de toda a conspiração por Ryan. Mas, como a história nos mostra, na realidade a relação existente entre o país e as ditaduras sul-americanas muitas vezes não são nem de conhecimento do Senado e são fechadas por debaixo dos panos em acordos que envolvem a chefia da CIA e o presidente dos Estados Unidos. Assim, na realidade seria muito mais provável que Jack Ryan fosse enviado à Venezuela para garantir que Reyes fosse eleito e continuasse no poder do que permitir que ele investigasse a fundo as origens da corrupção do país.

Menos análise, mais ação

O abandono da sutileza pode ser percebido não apenas nos temas abordados pela trama, mas no próprio estilo de ação da série. Ainda que o protagonista continue como um analista, é visível a transição dele para um estilo de herói bem mais próximo daquilo que conhecemos como “o grande herói americano”, o soldado que sozinho consegue derrubar governos e acabar com guerras, e que segue a tradição de figuras como Rambo, Braddock e James Bond (ainda que este seja inglês, ele possui todas as características que se espera de uma figura heroica típica dos filmes de Hollywood).

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Mesmo que a trama novamente se inicie por conta de uma descoberta feita por Ryan enquanto analisa planilhas, o trabalho dele na segunda temporada se afasta do escritório e o aproxima ainda mais da ação. Há muito menos cenas que se passam em salas fechadas quando comparado à primeira temporada, e mesmo nessas a maior parte das vezes está ocorrendo algum tipo de ação na sala, seja um interrogatório ou uma discussão acalorada, não havendo mais tantas cenas onde os personagens simplesmente conversam e analisam os dados encontrados para tentar definir qual é o próximo passo da investigação.

Essa mudança também pode ser vista na própria conduta do protagonista: enquanto na primeira temporada a função dele nas cenas de ação era bem secundária, participando de invasões a casas terroristas, mas sempre como parte da equipe de apoio na retaguarda, deixando claro que ele fazia parte da operação por conta de sua mente, e não de suas habilidades de soldado; nesta segunda temporada Ryan se torna o foco de toda a ação, liderando equipes de resgate compostas por soldados de elite altamente treinados e trocando socos com assassinos de aluguel. Esse tipo de mudança pode ser visto até mesmo na escolha de “par romântico” dele nesta temporada: enquanto na primeira temporada o protagonista faz dupla romântica com uma médica epidemiologista, na segunda temporada Jack acaba se envolvendo com uma agente do serviço de inteligência alemão, o que é muito mais condizente com o novo papel de “herói de ação” do que uma médica laboratorial, ainda que nos livros de Tom Clancy que serviram de inspiração para a série é com essa médica que Ryan acaba se casando e tendo filhos.

E é justamente por essa mudança que a pergunta mais difícil de responder é se a segunda temporada de Jack Ryan é realmente melhor do que a primeira. Se você acha que a primeira temporada da série era muito parada e com pouca ação, então sim, a segunda temporada é realmente muito melhor. Mas se você gostava dos diferentes níveis de complexidade narrativa e de como Jack Ryan fugia daquele estereótipo padrão do que esperamos de um herói de ação, então esta segunda temporada pode ser um pouco decepcionante.

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Mas, independentemente de qual sua opinião sobre as mudanças na narrativa, uma coisa é certa: a segunda temporada de Jack Ryan é facilmente uma das melhores produções da Amazon e talvez seja a obra de ação que mais conseguiu se aproximar de aliar todas as complexidades exigidas de uma trama política com cenas de ação cheias de tensão desde a primeira temporada de 24 Horas, e esse talvez seja o melhor elogio que qualquer série de TV militarista pode receber.