Crítica | Bandidos na TV choca ao mostrar caso real que parece absurdo
Por Natalie Rosa | •
Programas de sensacionalismo são comuns no Brasil. Assassinatos, tráfico de drogas, sequestros, estupros, entre outros crimes, revoltam a qualquer um, não há dúvidas. Mas, além de provocar a ira da população, desperta a curiosidade de formas que só a psicologia pode explicar.
Misturando a raiva e a curiosidade ao medo, programas de televisão que mostram a “justiça sendo feita” atraem a atenção do povo, que passa a ter um sentimento de esperança e do fim da impunidade. E foi exatamente esse cenário que fez o programa Canal Livre e seu apresentador, Wallace Souza, se tornarem extremamente populares em Manaus nos anos 1990 e 2000.
A história de Wallace virou uma série documental na Netflix com sete episódios. As manchetes sobre a produção, assim como acontecia com o programa Canal Livre, despertou os maiores instintos de curiosidade de quem as liam. "Apresentador que mandava matar por audiência vira série de TV", "Apresentador de TV acusado de comandar tráfico e assassinar por audiência vira série na Netflix". Títulos que não precisam nem da leitura da matéria para que despertem a vontade de assistir.
Pois bem, a série estreou na Netflix e logo o caso voltou a virar assunto na mídia. A produção recebeu o nome de Bandidos na TV (Killer Ratings na versão estrangeira) e conta a história de Francisco Wallace Cavalcante de Souza, conhecido na mídia somente como Wallace Souza. Ele tinha apenas uma motivação: combater o crime em Manaus, capital do Amazonas. Para isso, começou a comandar o programa Canal Livre.
No estúdio, Wallace gostava de dizer o quanto odiava bandido, que a única solução para eles era o caixão, exatamente com essas palavras. Seus repórteres recebiam denúncias e iam rapidamente para locais onde aconteciam crimes, na maioria das vezes como causa do tráfico de drogas, que era muito forte na região. Pessoas recém-baleadas no chão, dentro de carro, em matagais. O programa não hesitava em mostrar essas imagens gráficas para todo o estado assistir.
O apresentador comemorava, dizia estar satisfeito com a sua missão de acabar com a bandidagem no seu estado, mesmo que fosse de forma sanguinária. Na plateia, pessoas que se sentiam ameaçadas e com medo de serem vítimas de traficantes idolatravam Wallace e o agradeciam pelo seu trabalho.
Ascenção e queda
Esta é a premissa da série documental dirigida por Daniel Bogado para a Netflix. A produção mostra todos os passos que levaram Wallace Souza a passar de apresentador de TV para deputado estadual, atingindo recordes de votação. Ele, que já era um herói, passou a ser praticamente um deus.
Mas, quanto mais visibilidade se tem, mais notícias, especulações e acusações começam a surgir para uma pessoa pública, principalmente quando se está envolvida com política. Através de uma denúncia anônima, a polícia de Manaus chega até Moacir Jorge Pereira, mais conhecido como "Moa", um ex-policial militar envolvido com o tráfico que acabou denunciando o apresentador e deputado como mandante de uma quadrilha extremamente perigosa. E é assim que começa o fim de Wallace Souza.
A série documental conta com sete episódios com cerca de 45 minutos cada, e não há nenhum momento sequer em que o espectador não é pego de surpresa. Quando parece que a situação finalmente seria resolvida e Wallace seria pego ou absolvido, uma nova denúncia, um novo depoimento, uma nova mentira, uma nova morte, uma informação desmentida acontece.
Em meio a depoimentos atuais e antigos, feitos durante toda a investigação do caso e para a série, é possível entender o quão perigoso era o envolvimento com a situação e o quão complicado foi acompanhar tudo o que acontecia. O problema ia muito além do "matar por audiência". Família, políticos, população e amigos se misturam ao longo dos episódios com sentimentos de tristeza, impunidade, medo e vitória.
Cassação e derrota
Um dos momentos mais marcantes de toda a série documental é quando o mandato de Wallace é cassado. Eleito pela terceira vez, o apresentador não pode concluir o seu trabalho após ter sido expulso do cargo em meio a tantas acusações.
Wallace resistia. Continuou sua vida normal como político e apresentador e em nenhum momento parecia que ia desistir, tanto que não o fez. Com a cassação, perdeu seu foro privilegiado e passaria a ser investigado como uma pessoa “comum”, e ainda teve prisão decretada. Seria o fim de uma era de fama, sucesso e idolatria para um sujeito sendo o que sempre condenou publicamente: um bandido.
Wallace Souza sofria de ascite, doença que foi agravada com as acusações e o mandado de prisão. Em julho de 2010, acabou falecendo após uma parada cardíaca e as investigações contra ele foram suspensas. Apesar de a verdade ter ido para o caixão com Wallace, outras pessoas continuaram sendo investigadas e cumprindo pena, como seu filho Raphael, que foi preso após a polícia encontrar provas de que ele fazia parte da quadrilha.
Hoje, cumprindo pena em regime aberto, Raphael diz ainda ter a esperança de provar que seu pai não era culpado dos crimes que era acusado. Além do filho, seus irmãos Fausto e Carlos Souza, que também faziam parte do Canal Livre, foram condenados por formação de quadrilha.
Gil da Esfiha
Quando Bandidos na TV foi anunciada pela Netflix, logo vieram os comentários perguntando se apareceria Gil da Esfiha, um vendedor de esfihas que ficava no palco do programa com sua bacia cheia de salgados.
Anos depois de suas aparições no programa, Gil virou meme por um dia ter brigado com a pessoa que controlava o fantoche do Canal Livre, o Galerito. E, sim, o momento está presente na série logo no seu início, porque simplesmente não teria como encaixar uma parte engraçada e tão característica do programa depois de todas as denúncias, crimes e casos que começam a aparecer no decorrer da história.
Assista ao momento da briga:
Repercussão nacional e internacional
O caso Wallace tomou repercussão nacional e internacional após virar reportagem no Fantástico. A partir dali, a reputação do apresentador e deputado foi por ladeira abaixo. Em quase sete minutos de matéria, o programa descreveu todos os detalhes dos crimes e acusações, chocando todo o Brasil.
Após a repercussão da reportagem, logo a história virou notícia mundial em portais como o britânico The Guardian, o espanhol El País, The Chosun, da Coreia do Sul, além da BBC, CNN, ABC, entre outros.
Opiniões divididas
Enquanto para alguns Wallace é, de fato, culpado, para outros ele foi vítima de perseguição política e é inocente de todas as acusações. Bandidos na TV não diz que é um, nem outro, mas mostra ambos os lados e os deixam abertos para que o espectador crie suas próprias opiniões, tire a sua própria conclusão.
Não só a família de Wallace, como pessoas que trabalhavam com ele no Canal Livre acreditam em sua inocência, como é o caso da produtora Vanessa Lima, que foi acusada de participar do esquema de tráfico de drogas. Ela ficou dois anos presa, mas sempre acreditou na inocência do ex-chefe.
Bandidos na TV chega a forçar um suspense na apresentação dos fatos, seguindo o mesmo ritmo de programas de sensacionalismo. Por isso, pode parecer desnecessário ou arrastado para alguns, mas não há como negar que prende a atenção e alimenta a curiosidade que citamos no início deste texto.