Urina pode ajudar a combater a fome se usada na agricultura, dizem cientistas
Por Lillian Sibila Dala Costa • Editado por Luciana Zaramela |

A urina humana, na era da agricultura industrial, pode parecer um ingrediente rudimentar na fertilização de plantas, mas isso não faz dela menos eficiente. Nós ingerimos nutrientes na forma de nitrogênio, fósforo e potássio através da alimentação, e os expelimos especialmente em forma de urina: e é exatamente deles que as plantas precisam.
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Em alguns países, como a França, há programas de pesquisa, tal qual o OCAPI, que procuram montar sistemas de gerenciamento de dejetos humanos para o uso na agricultura. Mas as coisas não são tão simples assim: há resistência tanto por parte da população quanto advindas da dificuldade de sistemas como esses serem montados em escala industrial, substituindo produtos químicos já consolidados.
Fertilizantes atuais e seus problemas
Nos dias de hoje, são utilizados fertilizantes com nitrogênio sintético, que surgiu na indústria há mais de um século e auxiliou no crescimento da produção agrícola, que alimenta a crescente população humana. O problema é que, em grandes quantidades, o uso do produto chega até rios e outras vias fluviais e acaba causando crescimento exacerbado de algas, o que pode matar peixes e outras formas de vida aquáticas.
Além disso, emissões da amônia usada na agricultura podem acabar se combinando com a fumaça de veículos e se transformar em poluição área perigosa, ao menos de acordo com a ONU. Há, também, a emissão de óxido nitroso a partir de fertilizantes químicos, que é um potente gás de efeito estufa e contribui com as mudanças climáticas correntes.
E a questão se estende para dentro de nossas residências. O saneamento moderno é uma das origens primárias da poluição nutriente no mundo — a urina é responsável por cerca de 80% do nitrogênio encontrado na água de esgoto e mais da metade de todo o fósforo. E para substituir fertilizantes químicos, seria necessário muitas vezes o seu peso em urina tratada.
Soluções com urina — e seus problemas também
Como a produção de nitrogênio sintético é uma fonte significativa de gases do efeito estufa e o fósforo é um recurso não-renovável e, portanto, limitado, utilizar sistemas de desvio de urina seria um modelo útil para o tratamento de dejetos humanos e produção agrícola ao mesmo tempo. Um estudo feito por cientistas da ONU, em 2020, calculou que o esgoto global poderia, teoricamente, suprir 13% da demanda de nitrogênio, potássio e fósforo da agricultura mundial.
Mas não é tão fácil quanto parece. O excremento urbano já foi, no passado, levado ao campo para servir como fertilizante, junto ao esterco animal, antes das opções químicas surgirem. Atualmente, é necessário repensar os banheiros e o sistema de esgoto como um todo para ser possível coletar a urina da fonte. Há, desde os anos 1990, projetos como os de eco-vilas na Suécia.
Inovações ecológicas como essas levam tempo e muito investimento para serem feitas. Os primeiros protótipos, por exemplo, eram considerados pouco práticos e geravam preocupação quanto ao cheiro. Novos modelos têm eliminado esses problemas, mas, em seguida, há o processamento dos dejetos: a urina não costuma carregar doenças, mas a OMS recomenda que seja deixada "de molho" por um determinado período, ou pasteurizá-la.
Então, é preciso concentrar e, em alguns casos, desidratar o líquido, para que o volume seja reduzido e o custo para o transporte até o campo diminua. Após isso, resta apenas a resistência do público — o assunto, afinal de contas, mexe com questões íntimas da vida humana.
A Paris et Metropole Amenagement, autoridade pública de planejamento urbano na capital francesa, é uma das instituições que já vem desenvolvendo iniciativas para usar a urina na fertilização de espaços verdes: nesse caso, um eco-distrito em Paris que inclui 600 habitações e várias lojas. Há, em vista, potencial para o uso em construções grandes como escritórios e casas desligadas da rede de saneamento público.
Também em Paris há o restaurante 211, que tem banheiros secos com coletores de urina. A população tem aprovado, pois, apesar de surpresa, não considera o sistema tão diferente em comparação com o tradicional. O próximo passo já é mais complicado — será que a população está pronta para comer alimentos fertilizados com urina?
Estudos mostram que populações como a chinesa, francesa e ugandense têm taxas de aceitação altas para com esses alimentos. Já na Jordânia e em Portugal, esses números caem bastante. A visão do público vem mudando com acontecimentos mundiais: a invasão russa da Ucrânia causou escassez de fertilizantes sintéticos, por exemplo, o que traz mais visibilidade às alternativas disponíveis.
Especialistas apontam que outros eventos futuros, como escassez de água e percepção dos danos causados pela poluição, poderão seguir mudando a opinião pública aos poucos. À medida que se entende o quão preciosa a água é, menos se tolera estragá-la com poluição.
Fonte: AFP via France24