Invasão russa da Ucrânia traz crise reprodutiva ao país, atingindo milhões
Por Augusto Dala Costa • Editado por Luciana Zaramela |
A Ucrânia está, no momento, passando por uma crise de saúde reprodutiva — uma situação trazida pela invasão russa ao país, em fevereiro deste ano. Mais de 80 mil pessoas ucranianas estão na fila para dar à luz, de acordo com o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), cerca de 1.000 nascimentos por semana. Já os dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) informam que 15% das gravidezes, sejam elas em zonas de guerra ou fora delas, irão precisar de auxílio médico especializado por conta de complicações com risco de vida. Até o momento, já há relatos de refugiadas que deram à luz em abrigos subterrâneos e estações de trem.
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Agora, aumenta o medo dos efeitos a curto e longo prazo da negligência de cuidados reprodutivos no país, incluindo aborto e barrigas de aluguel, prevenção de doenças e suporte a sobreviventes de abusos sexuais. Mais de 50% da população é composta por mulheres — e essas são necessidades não-negociáveis, afirma Caroline Hickson, diretora regional europeia da Federação Internacional da Paternidade Planejada (IPPF).
Problemas estruturais e logísticos
Não obstante, tais serviços estão escasseando: mais de três milhões de ucranianos já fugiram do país, enquanto outros se refugiaram em cidades menos afetadas pelos ataques. Pelo menos 34 instalações de saúde foram afetadas desde o início da invasão, incluindo maternidades como a de Mariupol, destruída na semana passada.
Especialistas apontam que a saúde reprodutiva deveria ser prioridade no cuidado tanto das refugiadas quanto das que escolheram ficar no país. A mortalidade materna, isto é, quando a mãe morre de causas relacionadas à gravidez, é alta na Ucrânia desde muito antes da guerra.
O acesso a medicações também foi afetado, já que cadeias logísticas foram quebradas e estoques foram esvaziados ou destruídos. Terminais e armazéns costumam ficar perto de Kiev, capital e cidade mais populosa, onde a situação agora é difícil. Muitos trabalhadores da saúde fugiram com a população, enquanto outros ficaram para trabalhar nas maternidades e hospitais.
Algumas grávidas são separadas de seus parceiros, já que homens de 18 a 60 anos são proibidos, pela lei marcial, de sair do país — assim sendo, gravidezes anteriormente planejadas se tornam menos sustentáveis. A pandemia vinha afetando a infraestrutura de saúde desde antes do conflito, deixando uma situação já precária no início da crise humanitária na Ucrânia.
A disponibilidade de medicamentos mais rotineiros também foi afetada, como contraceptivos hormonais, essenciais para evitar uma gravidez não desejada em momentos ainda mais críticos, como o da invasão russa. Hickson ainda lembra dos HIV-positivos, que precisam da terapia antiretroviral, e de pessoas transgênero, com a terapia hormonal, que têm suas situações muito agravadas caso fiquem sem suas medicações. Durante crises, a saúde reprodutiva é uma das últimas a receber atenção, apesar de ser considerada prioridade por organizações de saúde.
Medidas de mitigação
Ajuda humanitária vem chegando à Ucrânia e aos países fronteiriços desde o início do conflito. A UNFPA, por exemplo, enviou suprimentos de primeira necessidade, priorizando a saúde reprodutiva; os Médicos Sem Fronteiras treinaram profissionais de saúde no ocidente para cuidar de traumas de zona de guerra. Já a Unicef enviou 62 toneladas métricas de suprimentos, incluindo kits obstétricos, que se juntam a equipamentos para partos, sejam normais, de risco ou cesáreas, enviados pela UNFPA.
Galyna Maistruk, gineco-oncologista de Kiev que presta ajuda humanitária na Ucrânia desde o conflito na Crimeia, elogia os kits médicos enviados, com os quais já teve contato em Luhanks, província separatista no leste do país. Ela afirma ser possível montar uma sala de operações completa com eles em duas horas.
Suprimentos da Unicef incluem "kits de dignidade", que vêm com roupas de baixo, sabão, um balde e produtos de higiene, além de ferramentas para segurança pessoal como uma lanterna, um apito e informativos acerca de violência baseada em gênero.
Há alguns fatores, no entanto, que complicam as medidas de suporte às vítimas. Enquanto a Ucrânia tem políticas liberais acerca do aborto, na Polônia, onde a maioria das refugiadas está, a prática é praticamente banida — permitida apenas em casos de estupro, incesto ou risco à saúde da mãe. Polonesas costumavam viajar até a Ucrânia para abortarem. Cuidados pós-aborto também são controversos, apesar do fato de que nenhum país deixaria uma paciente nessas condições sem ajuda, afirma Sara Casey, especialista em saúde pública e ajuda humanitária da Columbia University.
Organizações de saúde também têm enviado ajuda às grávidas de aluguel: a chamada maternidade de substituição é comum na Ucrânia, que tem uma das maiores redes do mundo, com cerca de 2.000 bebês gestados em barrigas de aluguel anualmente.
Casey nota que a ajuda humanitária vem melhorando substancialmente ao longo dos anos, graças ao trabalho de grupos de interesse e suporte a ONGs. Na crise da Bósnia, nos anos 1990, absurdos como placas de "Centro de Estupro" eram utilizados em campos de organizações humanitária, o que afastava ao invés de atrair vítimas, segundo ela. Nos campos de refugiados rohingya de Bagladesh, em 2016, as coisas já estavam melhores; foi a primeira vez que Casey viu auxílio a abortos ser disponibilizado de forma eficiente. O foco, agora, é ajudar os profissionais de saúde locais na Ucrânia, que estão trabalhando em meio a bombardeios, afirma Hickson.
Fonte: Wired