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Saiba como um artista arruinava silenciosamente os traços de Jack Kirby

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Os bastidores da história da Nona Arte reservam várias figuras e casos curiosos que poucas pessoas sabem, e que tiveram influência em muitas obras que consumimos, sem termos a mínima ideia do que aconteceu. Um desses personagens “secretos” é Vince Colletta, artista que arruinava silenciosamente os traços de Jack Kirby, mesmo com o aval da Marvel Comics.

Antes de mais nada, é preciso destacar a importância de uma arte-finalista nos quadrinhos. É uma função primordial para a produção de uma boa história, ainda que não seja bastante valorizada. É esse profissional que transforma as páginas desenhadas a lápis na matriz original coberta com tinta, pronta para ser impressa.

E, embora muita gente acredite que o arte-finalista apenas “cobre os desenhos a lápis com tinta”, o papel que ele desempenha vai muito além. Sua função básica é definir com clareza os traços, planos e detalhes que o ilustrador original concebeu na narrativa, fazendo com que as ações, personagens e cenários ganhem as minúcias, texturas e sombras adequadas.

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São com as sombras, texturas e detalhes bem definidos pela tinta do arte-finalista que o cenário, a roupa, o movimento, as características e expressões corporais e faciais e a orientação da narrativa podem fluir da maneira mais adequada possível. Tudo o que é destacado com minúcias a partir do trabalho cru é que permite ao leitor ter uma clara compreensão das informações gráficas.

O arte-finalista é tão importante que ele pode ajudar a compor dramaticidade, ritmo, escala, sombra e luz, emoções, limites entre planos de narrativa, formas de pessoas e objetos, além da tonalidade certa para cada narrativa — é preciso ter cuidado com o equilíbrio e o peso de cada informação visual é destacada em harmonia, para não poluir ou causar conflito. Exemplo disso pode ser visto no trabalho do veterano Klaus Janson, que abusava de pincéis e penas com nanquim para destacar volume, peso, textura e formas orgânicas de forma dramática nos traços precisos de John Romita Jr. no Justiceiro.

Abaixo, veja como o trabalho da mesma dupla é diferente em uma ilustração de Torre Negra, com Janson valorizando as linhas precisas de Romita Jr., assim como o efeito da chuva e as formas em branco que destacam contraste, textura e definição de formas. Dá para notar que a ideia buscava o impacto do preto-e-branco, com técnicas de arte-final específicas para a produção sem cores.

E, em alguns casos, o arte-finalista pode empregar um traço tão característico que pode definir um trabalho estilizado e único. O problema é quando esse profissional impõe uma identidade visual que descaracteriza o material original ou remove elementos essenciais da narrativa. Pior: se o acabamento for preguiçoso, a história pode se tornar confusa e incompleta.

O caso de Vince Colleta não chegou a destruir narrativas, mas vandalizou painéis ricos em detalhes e texturas e até transformou o impacto, a criatividade e a precisão dos traços de Jack Kirby em traços amadores e inconsistentes. Até o fluxo da ação se perdia com tanto desleixo.

Quem é o artista que arruinava silenciosamente os traços de Jack Kirby?

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Vince Colletta nasceu na Sicília, Itália, e veio de uma poderosa família de mafiosos. Seus pais fugiram das autoridades europeias quando o cerco da lei apertou, e Vince, que lutou pelos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial, traçou um caminho distante das atividades ilegais de seus antepassados. Sua educação na New Jersey Academy of Fine Arts o levou para a carreira artística.

Vince estreou nos quadrinhos em 1952, como desenhista freelancer, arte-finalizando seu próprio trabalho em histórias românticas na Better Publications. Era uma época em que esse segmento fazia bastante sucesso e não exigia narrativas complexas, muito menos ilustrações autorais. A demanda era mesmo por profissionais que pudessem entregar páginas completas com agilidade.

Foi nessa época que ele passou a trabalhar em histórias românticas e aventuras na selva da Atlas, que viria a se tornar a Marvel Comics. Nesse período, Vince também atuava como ilustrador freelancer para a DC Comics e para a Charlton Comics, no mesmo segmento. Sua grande virtude sempre foi sua agilidade para entregar os trabalhos nos apertados prazos, algo que poucos profissionais do ramo conseguiam nesse momento.

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Mas engana-se quem acha que ele fazia isso de forma competente, pois seu interesse era mesmo na grana: ele economizava tempo e tinta, e criava “atalhos” para terminar rapidamente a páginas. E por que, então, ele permaneceu trabalhando por tanto tempo, mesmo arruinando silenciosamente as páginas de Jack Kirby?

Como Vince Colletta arruinou silenciosamente os traços de Jack Kirby?

Bem, Jack Kirby era conhecido como o “Rei”, pois tinha uma grande inventividade para conceber estruturas cósmicas e criar texturas, brilho e sombra para coisas que nunca existiram. Ele também gerava cenas de ação de alto impacto, que fundaram o “Jeito Marvel de desenhar”: um estilo que sempre busca o movimento no ápice de sua parábola.

Além disso, cada painel era bastante detalhado, com uma precisa composição de elementos que até parecia um trabalho de fotografia cuidadosamente equilibrado, sem que nenhum design das estruturas, personagens e objetos entrassem em conflito ou diluísse a hierarquia de relevância para a narrativa.

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Kirby tinha um exaustivo trabalho de desenhar vários títulos mensais, então, ele precisava ter vários arte-finalistas. Vale destacar que os anos 1960 e 1970 foram marcados pela multiplicação de publicações da Marvel, que viu seu catálogo praticamente dobrar de tamanho em pouquíssimo tempo, dado ao sucesso de seus super-heróis.

Abaixo você pode ver como seu trabalho funcionava bem com o acabamento de Joe Sinnot, que mantinha todo o dinamismo e o impacto da ação, sem deixar de lado as diferentes espessuras de contorno e sombras sólidas, com um resultado eficaz e refinado.

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Já Bill Everett valorizava o drama e concentrava detalhes importantes dos personagens com uma caracterização bem definida e consistente, como nesse outro exemplo.

Enquanto isso, Vince Colletta eliminava várias partes do cenários e até personagens, e alguns resultados ficavam tão irregulares que sempre parecia faltar algo, principalmente o peso certo para as texturas e sombras. Veja como o trabalho de de Colletta parece coisa de criança quando comparado com o de Joe Sinnot.

Colletta só conseguia manter seu emprego porque ele realmente era rápido e entregava as páginas dentro do deadline. Além disso, a Marvel vivia precisando de seus serviços de última hora, que eram sempre concluídos a tempo da impressão e distribuição — as editoras são punidas quando não entregam títulos na data de lançamento anunciada.

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O arte-finalista também conseguia se safar por falta de “fiscalização” do resultado final. Embora genial, Jack Kirby não fazia questão de ler seu material impresso, e, por isso, ele sequer chegou a ver várias das atrocidades cometidas por Colletta.

E vale destacar que, apesar dos resultados toscos de seu trabalho, Colletta era um cara que se dava bem facilmente com todos os colegas de trabalho e pessoas seu redor — então, ainda que seu material mutilasse os originais de Kirby, a Marvel preferia mantê-lo por conta de sua agilidade e da facilidade de lidar com o arte-finalista.

O que aconteceu com o artista depois de arruinar os traços de Jack Kirby?

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Bem, muita gente começou a criticar o trabalho de Colletta, principalmente na comunidade de artistas. Joe Sinnott chegou a declarar sua insatisfação: "Quando eu desenhava histórias de romances eu falava comigo mesmo que Vince destruiu o que fiz.... Ele eliminava pessoas dos quadrinhos e usava silhuetas...".

Já o escritor Len Wein falou numa entrevista que levava rapidamente as histórias de Luke Cage para o sensacional arte-finalista George Tuska, antes que Vinnie Colletta as vandalizasse. E até o cocriador do Homem-Aranha, o desenhista Steve Ditko, que gostava de acompanhar o trabalho do Rei, sempre observava os créditos das revistas, e, caso encontrasse o nome de Colletta, ele simplesmente abandonava os títulos ou os jogava no lixo.

Colletta até poderia ficar mais tempo na Marvel, mas, depois que o editor Jim Shooter foi demitido, o arte-finalista ficou tão magoado com a atitude da editora que escreveu uma carta enumerando os vários talentos de Shooter, comparando-o até com Jesus Cristo. E ele não somente o enalteceu como também criticou e até xingou todos os outros editores da Casa das Ideias.

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Nos anos 1980, Colletta continuou atuando como freelancer, tanto para a Marvel como para a DC, mas em títulos menores. E, em junho de 1991, o arte-finalista morreu aos 67 anos, e, ainda que muita gente torça o nariz para o arte-finalista — eu inclusive — há também quem acredite que seu estilo e rapidez tenham combinado bem, especialmente durante sua passagem na revista do Thor.