Inclusão Digital para quem?
Por José Otero | 06 de Maio de 2020 às 10h00
Uma das consequências da COVID-19 é a migração de atividades cotidianas ao mundo da Internet, incluindo as apresentações fornecidas por distintos atores da indústria das telecomunicações. O aumento em reuniões, lives, webinars e podcasts têm superado a demanda. É praticamente impossível conseguir participar de tudo porque o dia só conta com 24 horas.
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De todas as formas, nas poucas reuniões que conseguimos nos conectar, existe um discurso repetitivo com a afirmação no que diz respeito à Internet e ao mundo das telecomunicações: estes nos permitiram continuar os dias com um pouco de normalidade.
Cada vez que escuto essa frase me questiono: normalidade para quem? Por acaso a informalidade não constitui 56% da força de trabalho? Quais equipamentos de conexões de banda larga são mínimos que poderiam se classificar como próximos da realidade?
O problema já conhecemos, é o egoísmo natural e a tendência ao protagonismo. Muitas vezes pecamos por reduzir a humanidade à nossa realidade e graças ao maravilhoso mundo da Internet alegando que estamos nos tornando mais tolerantes. Nos interessa escutar e ler quem compartilha um discurso similar, no qual o mundo é cor de rosa e os unicórnios novamente são animais mitológicos.
Ousar dizer que a pandemia exibiu grandes diferenças no acesso aos serviços de telecomunicações é valentia de poucos. Afirmar que as exclusões digitais estão mostrando seu lado mais doloroso e perigoso em um momento em que a informação pode significar a diferença entre a vida e a morte não é algo popular. Recordar máximas como “conectar os desconectados” se torna uma oração desconfortável em um mundo onde é fácil adorar ídolos de ouro.
Precisamente, por todas estas razoes, é necessário agora mais do que nunca começar a falar de inclusão digital. Se essas duas palavras, que estão na boca de muitos políticos vêm à tona em cada desastre que ocorre, nos dão conta da grande importância de converter verbo em ações concretas.
A que me refiro como inclusão digital? Sem entrar em definições barrocas, quando uso este termo me refiro não somente a oferecer acesso às tecnologias, mas também capacitação e um organograma de logística que cobre todo o apoio que uma comunidade possa precisar para o uso sem ocorrências das telecomunicações.
Falar em inclusão digital é transferir o direito humano à "quarta geração", que causa tanto orgulho em discursos e livros didáticos para o mundo das ações. É sabido que estamos usando um dos verbos favoritos dos evangelistas digitais, capacitando a população, dando-lhes ferramentas que lhes permitam melhorar sua qualidade de vida, identificando novas oportunidades.
Obviamente, o lado obscuro da força que promove a inclusão digital nos lembra que falar sobre o assunto é muito fácil em áreas que já têm cobertura, porque as operadoras já identificaram um retorno do investimento nesses locais. O problema surge quando a questão da inclusão digital é promovida por moradores de cidades ignoradas por prestadores de serviços privados e também pelo governo. É um lembrete estranho de que nem todas as promessas da campanha podem ser cumpridas.
A Covid-19 - novo coronavírus - deve nos ajudar a entender que, se limitarmos os esforços de inclusão digital às áreas em que existe retorno do investimento para grandes operadoras, a prioridade do governo não será seus cidadãos. A questão é complexa e requer a colaboração dos governos locais e nacionais em conjunto com o setor privado. Limitar a inclusão digital a quem pode pagar é um ato moderno de segregação social.
*Esta coluna é escrita em caráter pessoal.