O que é um gêmeo digital e qual a relação deles com a inteligência artificial?
Por Melissa Cruz Cossetti | •

Um gêmeo digital é uma versão, uma representação virtual de algo físico como um objeto, um processo, um sistema do mundo real ou mesmo uma pessoa – só que criado e armazenado por computadores. Essa cópia, com uma camada de IA, funciona como um simulador avançado e com um infinito número de aplicações úteis que passam por vários setores da nossa indústria.
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Digital Twins
A ideia da tecnologia foi expressa pela primeira vez em 1991, com a publicação do livro Mirror Worlds, de David Gelernter. No entanto, é atribuído a Michael Grieves — então professor da Universidade de Michigan — a aplicação do conceito na indústria pela primeira vez em 2014. Eventualmente, John Vickers, da NASA, foi vinculado ao termo em inglês ainda em 2010.
Vale dizer que a NASA foi pioneira no uso da tecnologia de “digital twins” em missões de exploração espacial na década de 1960 — preparação para a Apollo XII —, quando cada espaçonave era exatamente replicada em uma versão terrestre usada para os estudos.
Ainda que haja a comparação, o gêmeo digital é um ambiente virtual bem mais complexo do que uma simulação tradicional, beneficiando-se de dados e troca de informações em tempo real.
Aplicações do gêmeo digital
Para quem está se perguntando para que serve uma cópia como essa, há vários exemplos de maior ou menor impacto na vida humana, que passeiam por toda os setores, chegando na sua cidade, na sua casa e tendo impactos até na sua saúde. Em breve, você também terá o seu.
Veja algumas das aplicações do gêmeo digital;
- Indústria: uma turbina de avião tem sensores que enviam informações sobre temperatura, vibração e desempenho. O gêmeo digital da turbina reproduz isso virtualmente, permitindo prever falhas e planejar a manutenção em tempo hábil;
- Cidades inteligentes: criar gêmeos digitais de ruas, vilas, bairros ou cidades inteiras pode ajudar a testar cenários de mobilidade, de energia e de segurança para grandes shows/eventos com público acima do habitual com grandes aglomerações;
- Saúde: modelos digitais de órgãos ou mesmo do corpo todo podem ajudar médicos a testar tratamentos sem estressar tecidos com substâncias e causar riscos ao paciente que está debilitado, permitindo encontrar o tratamento com menos danos;
Gustavo Noan, gerente de engenharia da Temon Serviços, explica como é aplicado o conceito no seu contexto da engenharia: uma representação virtual de um edifício real, criado a partir de um escaneamento 3D em 360º. Uma tecnologia que combina fotos de alta resolução com sensores de profundidade para gerar modelos digitais interativos e precisos das construções reais.
“Esse recurso permite caminhar virtualmente por prédios de grande porte, visualizar informações técnicas dos equipamentos, abrir chamados de manutenção dentro do próprio ambiente digital e realizar simulações em realidade aumentada e realidade virtual”, conta.
É possível encontrar esse tipo de solução, em um primeiro momento, sendo aplicado em edifícios corporativos de alto padrão, como alguns empreendimentos na Vila Leopoldina e Vila Olímpia, na cidade de São Paulo. A meta, porém, é expandir para seis empreendimentos ainda em 2025.
Indo além, a Federação Internacional de Automobilismo (FIA), responsável pela Fórmula 1, anunciou que expandiu em setembro a adoção de soluções da Siemens, parceira desde 2002, em projetos e melhorias nos conceitos de carros de corrida da próxima geração.
A ideia é trabalhar a aerodinâmica dos carros sem precisar mexer neles, usando gêmeos digitais. A decisão reduz o impacto ambiental da fabricação de protótipos e de testes físicos.
"Esta tecnologia é fundamental para garantir que as corridas permaneçam mais disputadas, justas e competitivas enquanto apoia nossa ambição de atingir zero emissão líquida (net zero) até 2030”, disse Jason Somerville, chefe de aerodinâmica da FIA, em comunicado.
A relação do gêmeo digital com a IA
A relação entre gêmeos digitais e inteligência artificial (IA) é muito próxima, porque a IA é justamente o que dá vida (ou “inteligência”) a esses “corpos virtuais”, permitindo que as análises de diferentes cenários sejam automatizadas, registradas e componham relatórios.
“A inteligência artificial analisa os dados, prevê comportamentos, identifica falhas antes que aconteçam e sugere mudanças. Ou seja, a IA transforma o gêmeo digital em um objeto de teste do seu gêmeo do mundo físico, uma espécie de dublê”, explica Mônica Magalhães, futurista, formada em Ciência da Computação e especialista em tecnologias emergentes.
Um exemplo foi o uso dessa tecnologia em maio, quando o Governo do Estado do Rio de Janeiro utilizou soluções da Dahua Technology na gestão do show de Lady Gaga, na Praia de Copacabana. O gêmeo digital foi construído com soluções inteligentes de segurança eletrônica e AIoT, dados de drones com reconhecimento facial, leitura automática de placas (LPR), câmeras inteligentes e sistemas integrados de monitoramento urbano da cidade que já operavam.
"Em grandes eventos como esse, com alta concentração de público, o gêmeo digital contribui para a tomada de decisões estratégicas, direcionando recursos de segurança — como equipes, câmeras e alarmes — de maneira mais assertiva. O show de Lady Gaga foi um marco na aplicação de tecnologia de ponta para proteção de grandes eventos e espaços urbanos", conta Lucas Kubaski, diretor de produtos da Dahua Technology Brasil.
Para Amanda Graciano, especialista em negócios digitais, tendências, inovação e gestão, o salto evolutivo acontece justamente quando conectamos o conceito com as capacidades da IA.
“O gêmeo deixa de ser estático e passa a aprender em tempo real, sugerindo caminhos mais inteligentes. Podemos simular cenários, testar decisões e antecipar riscos, sem precisar gastar ou errar no mundo físico”, explica.
Essa guinada é o que transforma tanto a forma como produzimos quanto a forma como vivemos, aponta Guilherme Pereira, que é diretor de inovação da Alura para empresas.
"Os gêmeos digitais estão ganhando cada vez mais relevância com o uso da IA. Se antes eram vistos apenas como representações virtuais de máquinas, produtos ou processos, hoje eles incorporam algoritmos de IA capazes de aprender, simular cenários e antecipar comportamentos. Do cotidiano ao setor produtivo, a combinação entre gêmeos digitais e IA cria um ciclo contínuo de experimentação, decisão e otimização", acredita o executivo.
Daniel Scuzzarello, vice-presidente e gerente nacional da América do Sul da Siemens Digital Industries Software, explica que os gêmeos digitais estão se expandindo para cobrir ciclos de vida de produtos inteiros – incluindo o impacto ambiental de eventos como a F1.
“A IA possibilita isso ao analisar vastos conjuntos de dados para otimizar o design, a produção e a manutenção, ao mesmo tempo em que se alinha com as metas de sustentabilidade. A IA ajuda a calcular as pegadas de carbono e apoia iniciativas ESG por meio de simulações de gêmeos digitais – especialmente em sistemas autônomos”, disse o executivo.
Exemplos práticos da relação gêmeo digital e IA
Ainda de acordo com Magalhães, os gêmeos digitais estão se expandindo em diferentes indústrias e os benefícios vão desde eficiência e redução de custos até a personalização, sustentabilidade e aceleração da inovação, já que é possível simular, prototipar e validar no digital antes de agir no mundo físico. Praticamente um “ambiente de testes” da vida real.
“Veremos gêmeos de fábricas inteiras, onde testes poderão ser feitos para melhoria de processos e antecipar manutenções. Na saúde, onde já permitem simular órgãos ou até o corpo inteiro de um paciente para oferecer tratamentos personalizados e cirurgias mais seguras. Também veremos aplicações em cidades inteligentes, otimizando a mobilidade, energia e gestão de recursos. Na construção e infraestrutura, no setor de energia, testando cenários em turbinas, painéis e redes elétricas antes da aplicação real, e no agronegócio, digitalizando lavouras e rebanhos para aumentar a eficiência da produção”, explica a futuróloga.
Alguns exemplos de gêmeos digitais com IA:
- Manutenção preditiva: a inteligência artificial, treinada para tal, analisa os dados do gêmeo digital de uma máquina, por exemplo, para prever quando ela vai quebrar;
- Otimização: em uma fábrica, a inteligência artificial usa o gêmeo digital para simular diferentes formas de produção e indicar qual é a mais eficiente naquele momento;
- Saúde: gêmeos digitais de órgãos humanos, combinados com inteligência artificial, podem prever como um paciente reagirá a um tratamento sem submetê-lo, ainda, ao uso desses medicamentos, evitando efeitos colaterais indesejados no corpo físico.
“Pense em um hospital simulando o efeito de um tratamento no gêmeo digital do paciente, ou em uma turbina avisando que vai falhar antes de parar. O benefício central é decidir melhor, mais rápido e com mais segurança, reduzindo custo, desperdício e acidentes, e elevando a qualidade do serviço”, complementa Graciano, especialista em negócios digitais.
Doppelgängers da Meta e do Baidu
Quando se fala em conceito de “gêmeo digital” em plataformas sociais e de vendas, Meta e Baidu são exemplos de como isso pode ser elevado ao máximo. Ambos estão usando a inteligência artificial (IA) para transformar a publicidade, levantando, porém, questões sobre o futuro das agências de publicidade ou mesmo da forma como se comunica e se vende.
A Baidu, gigante chinesa de tecnologia, trabalhou com "gêmeos digitais" de pessoas para apresentar transmissões ao vivo, arrecadando US$ 7 milhões em vendas ao longo de seis horas, promovendo 133 produtos sem descanso. Os avatares digitais eram tão convincentes que superaram o desempenho anterior do próprio influenciador Luo Yonghao.
Em paralelo, Mark Zuckerberg já afirmou que, até 2026, a Meta automatizará totalmente a criação publicitária para suas plataformas Instagram, WhatsApp e Facebook, utilizando IA para gerar anúncios personalizados em larga escala. Essa abordagem é para otimizar processos e reduzir custos, mas também levanta preocupações.
Mesmo com impacto no setor, Zuckerberg acredita que, em breve, a Meta ajudará as pessoas a construir seus próprios gêmeos digitais para responder mensagens diretas, conversar com seguidores e realizar outras tarefas.
Em um amplo bate-papo sobre inteligência artificial com o CEO da Nvidia, Jensen Huang, na na conferência SIGGRAPH, em agosto, o fundador do Facebook descreveu um futuro próximo no qual as ferramentas de IA da Meta vão auxiliar ajudar pequenas empresas e criadores de conteúdo gerar "uma versão de IA deles mesmos" que vai funcionar como uma espécie de agente ou assistente para interagir com a sua comunidade".
"Simplesmente não há horas suficientes no dia" para que os criadores de conteúdo de Instagram e Facebook se envolvam com sua comunidade da maneira que ela deseja, disse.
Enquanto qualquer um poderá produzir peças publicitárias de qualidade, as agências vão precisar se adaptar a essa nova era digital ou serão substituídas por soluções baseadas em IA. A tendência crescente de automação e personalização na publicidade digital sugere que as agências precisam inovar e incorporar tecnologias novas.
E você, já pensou em ter um gêmeo digital?
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