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Telltale: a ascensão e queda da última rebelde dos videogames

Por| 27 de Setembro de 2018 às 10h42

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Telltale Games
Telltale Games

Na última semana, uma notícia pegou toda a comunidade gamer de surpresa: sem qualquer aviso, a Telltale demitiu mais de 200 funcionários, cancelou todos os projetos em andamento e praticamente fechou as portas.

Nos 14 anos de existência desde sua fundação em 2004, a história do estúdio é uma narrativa quase metafórica de seu último trabalho: um contínuo apelo pelo passado que já não possui o mesmo brilho, com erros primários de execução e o cancelamento abrupto que pegou fãs e desenvolvedores e surpresa.

O início do sonho

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Fundada por três ex-funcionários da LucasArts, descontentes pela empresa ter cessado o investimento em jogos de aventura (também conhecidos por aqui como point & click), o objetivo da Telltale era pegar para si todo esse mercado abandonado pela antiga contratante de Kevin Bruner, Dan Connors e Troy Mollander. Eles acreditavam que ainda existia uma parcela do público que se interessava por jogos do gênero e que seria possível manter uma empresa que produzisse exclusivamente esse tipo de jogo caso conseguissem atualizar suas mecânicas.

Desde o começo, a ideia dos três era fundamentada por três pilares: os jogos deveriam ser episódicos, focados na distribuição digital e baseados em franquias famosas. Aproveitando as relações que possuíam com a Lucasarts, a intenção inicial do estúdio foi negociar para obter a licença de produção de jogos da franquia Sam & Max, tida como perfeita para testar o novo modelo de desenvolvimento e distribuição. Os executivos também acreditavam que, ainda que a base de fãs da franquia fosse relativamente pequena, era muito fiel, e por isso perfeita para constatar que o modelo de dividir um jogo em capítulos lançados com meses de diferença daria certo, e que esses fãs não abandonariam o jogo pela metade.

O grande problema dessa estratégia é que a LucasArts, ao mesmo tempo que não tinha intenções de fazer outro jogo da série Sam & Max, também deixou claro que não iria negociar os direitos que possuía sobre a marca. A Telltale foi obrigada a esperar até a metade de 2005, quando expirou o período que a LucasArts era detentora da marca, e Steve Purcell, criador dos personagens, ofereceu pessoalmente os direitos sobre eles para a Telltale. Nesse meio tempo, a empresa desenvolveu a Telltale Tool (ferramenta de criação que foi utilizado em todos os jogos ca companhia) e, numa parceria com a Ubisoft, produziu jogos baseados na série de TV CSI: Investigação Criminal.

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Sam & Max Save The World foi finalmente lançado em outubro de 2006, e foi o primeiro jogo a utilizar as características pela qual a Telltale ficaria conhecida: divisão em capítulos disponibilizados um de cada vez por uma distribuição estritamente digital. O último episódio do jogo chegou às lojas em abril de 2007 e provou que a estratégia da empresa poderia dar certo. Sam & Max Save The World foi um sucesso e manteve números de vendas estáveis em cada um dos seis capítulos lançados. A Telltale havia encontrado o nicho para seus trabalhos e agora precisava ampliar a carteira de clientes.

Um “golpe de sorte” facilitou essa ampliação. Com a nomeação de Darrell Rodriguez como CEO da LucasArts em 2008, a empresa mudou a postura para com suas franquias clássicas de aventura, e a nova liderança estava disposta a não fazer com que marcas que já foram sinônimo de videogame de alta qualidade na década de 1990 se tornassem símbolos de um passado que nunca iria voltar. Isso permitiu que a Telltale voltasse a negociar com eles, garantindo para si uma licença para utilizar a marca Monkey Island, uma das principais franquias de aventura. Em 2009, a Telltale lançou Tales of Monkey Island, e a “grife” da marca foi a responsável por atrair os olhares da imprensa especializada à desenvolvedora.

Assim como Sam & Max, Tales of Monkey Island também foi considerado um sucesso, e a empresa se mostrava pronta para saltos maiores. Já estabelecida no mercado como uma desenvolvedora de jogos de aventura reconhecida, em junho de 2010 o estúdio anunciou uma parceria com a NBC Universal para produzir jogos episódicos baseados nos filmes Jurassic Park e De Volta Para o Futuro. Ainda que Back to the Future: The Game tenha sido o maior responsável pelo crescimento econômico da empresa no início da década de 2010, foi o lançamento da franquia de dinossauros que marcou a mudança que levaria a Telltale ao sucesso absoluto e também ao fracasso retumbante. Lançado em 2011, Jurassic Park: The Game foi o primeiro título da empresa a se distanciar das mecânicas de gameplay tradicionais do gênero aventura, adicionando elementos como QTEs (quick time events) e escolhas de ação que devem ser efetuadas em um determinado período de tempo, o que adicionava um elemento maior de tensão à narrativa.

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Jurassic Park: The Game não obteve o sucesso esperado pela empresa, mas isso não a impediu de dobrar a crença no novo modelo de mecânicas que havia desenvolvido, levando-o ao extremo no que seria a próxima grande aposta: uma adaptação da história em quadrinhos The Walking Dead.

Ascenção e queda

Quando a Telltale lançou The Walking Dead em 2012, a franquia de zumbis já era um sucesso mundial devido ao canal AMC, que havia estreado a primeira temporada da série em 2010, e em 2012 já era uma das mais assistidas do mundo. A intenção inicial da Telltale era “navegar” nessa onda de sucesso; ainda que o jogo não tivesse ligação direta com a série de TV, a empresa acreditava que só o fato de carregar o nome da franquia já seria suficiente para torná-lo o jogo mais vendido da história da empresa — e nisso eles acertaram em cheio. O jogo vendeu um milhão de cópias em menos de um mês, gerando uma receita estimada de US$ 40 milhões.

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Mas esse sucesso não pode ser todo atribuído a essa relação com a série de TV. A Telltale apostou todas as suas fichas no jogo, mudando completamente a abordagem de narrativa. Ao invés de continuar seguindo o modelo clássico dos jogos de aventura, onde os jogadores devem decifrar enigmas em histórias contadas com bastante humor; para The Walking Dead, a empresa deixou de lado tudo isso e apostou numa narrativa cinemática, pensada no drama de dois desconhecidos que, em meio a um cenário de barbárie, desenvolvem uma relação afetuosa de pai e filha constrastante com o estado do mundo em que vivem.

Ao desenvolver um jogo que colocava as mecânicas de gameplay como auxiliares da narrativa, e não o contrário, a Telltale não só alcançava um sucesso de público e reconhecimento de crítica muito maior do que seus fundadores ousaram imaginar, mas também mudavam para sempre a história dos videogames, trazendo o gênero de aventura de volta aos holofotes e influenciando toda uma geração de desenvolvedores.

O sucesso de The Walking Dead foi seguido por The Wolf Among Us, jogo inspirado na série em quadrinhos Fables. Ainda que em menor escala que o jogo de zumbis, The Wolf Among Us também foi um grande sucesso da empresa, o que a deixou ainda mais certa de que estava seguindo no caminho correto.

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Foi quando a Telltale se sentia mais confiante que a diretoria começou a tomar as decisões que a levariam à ruína. A empresa mudou de local, ocupando um prédio maior para se adequar ao crescimento, que aparentava ser contínuo. Ela também começou a investir em mais licenciamentos, garantindo direitos para produzir jogos no mundo de Borderlands, jogo de tiro da Gearbox que serviu como base para Tales from the Borderlands; da série da HBO Game of Thrones; do sucesso da Mojang Minecraft; e também uma investida no mundo dos super-heróis, adquirindo os direitos para um jogo do Batman e sobre os Guardiões da Galáxia.

Em menos de uma década, o pequeno estúdio tinha deixado de ser um desconhecido que insistia em jogos de aventura para se tornar uma empresa inovadora, que havia ressuscitado um gênero considerado morto e detinha os direitos de produção de algumas das marcas mais lucrativas dos últimos anos. E foi aí que os problemas começaram.

Após o sucesso de The Walking Dead, cada novo lançamento da Telltale vinha cheio de expectativas: seria essa a próxima grande aventura narrativa do século? Mas ainda que a empresa tenha entregado bons jogos, como Tales from the Borderlands e Batman: The Telltale Series, os problemas ficavam cada vez mais claros: o estúdio havia esquecido do lado inovador que o colocou no topo do mundo, e todos os seus jogos seguiam o mesmo roteiro narrativo, dando a impressão de que eram todos a mesma coisa. Além disso, ele continuava utilizando a mesma engine criada em 2005, o que deixava o desenvolvimento travado e contribuia para que todos os títulos fossem lançados cheios de bugs, incluindo problemas de framerate e travamentos nos consoles.

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Com tantos jogos em desenvolvimento ao mesmo tempo, a empresa claramente estava tentando dar um “passo maior que a perna”, resultando em problemas internos com os funcionários. De acordo com uma reportagem publicado pelo The Verge em março deste ano, a Telltale adotava um estilo de gerenciamento tóxico aos funcionários, muitas vezes obrigando-os a trabalharem 20 horas por dia, sete dias por semana, para conseguirem entregar os jogos no prazo estipulado. Essa cultura, além de propiciar a estagnação criativa que já estava sendo sentida pelos consumidores, foi responsável pela debandada das principais cabeças criativas da empresa em seu “período de ouro”. Em 2018, nenhum dos responsáveis por inovar todo o gênero de aventura no começo da década continuava na companhia. Era nítido que a Telltale estava num processo de decadência, mas ela estava certa de que essa era apenas uma crise passageira e confiava que uma série de contratos em negociação renderia um aporte financeiro suficiente para, novamente, mudar seu destino — e inclusive já anunciava que pretendia aposentar a Telltale Tool para migrar todo o desenvolvimento dos próximos jogos para Unity.

Apesar disso, tudo ruiu na quinta-feira, dia 20 de setembro de 2018, quando, numa mesma tarde, a empresa perdeu dois grandes contratos que deveriam tirá-la do buraco. De acordo com a revista Variety, em questão de horas tanto a desenvolvedora coreana Smilegate (conhecida pelo jogo CrossFire) quanto o canal de TV AMC finalizaram as negociações de parceria que já estavam a ponto de ser assinadas, deixando a diretoria ver todo o futuro da companhia explodir diante de seus olhos. O que durante anos foi um ambiente tóxico chegou ao fim em cogumelo nuclear, com 225 pessoas sendo demitidas no dia seguinte, sem aviso prévio e qualquer pagamento de indenização.

O fim da Telltale ocorria da mesma forma que sua ascensão ao estrelato: de forma tão inesperada e abrupta que geraria sequelas na indústria como um todo.

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Legado histórico

Ainda que muitas vezes pensemos nas marcas como entidades antropomórficas, são as pessoas que trabalham nela que fazem história. E, nesse sentido, ainda será possível ver a influência da Telltale durante anos.

Entre os funcionários mais antigos, aqueles que abandonaram a empresa devido ao caminho sem volta da administração tóxica que ela estava trilhando, todos ainda fazem parte da indústria e jogos — alguns até com empresas próprias. Sean Vanaman e Jake Rodkin, que trabalharam como roteiristas no primeiro The Walking Dead, hoje encabeçam a Campo Santo, desenvolvedora que também aposta em jogos que colocam a narrativa como foco principal. Seu primeiro jogo, Firewatch, obteve relativo sucesso. Enquanto isso, Adam Hines, que trabalhou para a Telltale na produção de The Wolf Among Us, também tem sido reconhecido pela comunidade gamer pela abordagem única do gênero de aventura utilizada no jogo Oxenfree.

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Para além dos ex-funcionários, a Telltale também irá deixar um legado de influência em toda a indústria dos videogames. Em 2012, a empresa foi a primeira a mostrar que o caminho para receber prêmios de Jogo do Ano é criar narrativas de paternidade forçada em meio a um cenário apocalíptico — o que foi comprovado quando a crítica foi unânime ao considerar The Last of Us como o Jogo do Ano de 2013. Além disso, o modelo episódico já começa a ser usado também por jogos AAA, principalmente pela Square-Enix, que já lançou o último Hitman nesse mesmo modelo e anunciou que o remake de Final Fantasy VII também será divido em lançamentos episódicos.

A história das desenvolvedoras de jogos de aventura é uma narrativa cíclica: a Telltale surgiu no momento que a LucasArts e a Sierra estavam abandonando o mercado e, com o fim dela, testemunhamos a ascensão da Dontnod, que consegue colocar a franquia Life is Strange como um dos expoentes do gênero e Life is Strange 2 como um dos lançamentos mais aguardados deste ano. Mas ainda que essa narrativa cíclica continue, nenhuma outra empresa terá a mesma importância que a Telltale teve para o gênero de aventura.

Se empresas como a Dontnod e a Campo Santo conseguem se destacar no mercado hoje, recebendo atenção da imprensa em geral e não apenas de um pequeno nicho, é uma influência direta do trabalho da Telltale. Mais do que uma empresa fundada para desenvolver jogos de aventura, ela surgiu para desenvolver jogos de aventura numa época em que nem os inventores de um gênero tinham esperanças de lucrar com esse tipo de jogo.

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Ao contrário da maré de desenvolvedores que saem de grandes empresas para criar seus próprios jogos independentes em gêneros queridos pelo público, a Telltale foi criada como um sonho impossível de três pessoas que acreditavam conseguir prosperar com um tipo de jogo que não interessava a ninguém. Ela foi a última rebelde dos videogames, e teve uma morte digna daqueles que ousam enfrentar o sistema: cruel, pública e com vários inocentes sendo arrastados no processo. Mas assim como uma tirania não consegue matar um sonho, o fim da Telltale contrasta com a revolução que ela gerou em toda uma indústria, onde jogos narrativos podem ser tão importantes quanto o próximo GTA, e onde uma empresa com histórico de abusos de funcionários pode ser uma das mais influentes em nosso modo de pensar videogames pelas próximas décadas.

Fonte: IGN, Comic Book, Gamespot, Eurogamer, Gameindustry.biz, Polygon (1) (2), The Verge (1) (2)