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Análise | Twin Mirror traz mistério, psicologia e realidade em forma truncada

Por| 12 de Dezembro de 2020 às 09h30

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Captura de tela/Felipe Demartini/Canaltech
Captura de tela/Felipe Demartini/Canaltech

Quando se fala em Dontnod, a expectativa já é de títulos altamente emocionais, que tratam de temas importantes ou, simplesmente, que tocam fundo na alma humana. Quem jogou Tell Me Why ou Life is Strange, por exemplo, sabe bem disso e, também, vai se sentir em casa com Twin Mirror, título pouco divulgado pela empresa, mas que chega para fechar um ano bem importante na história da desenvolvedora francesa.

Não dá para entender muito bem por que o título recebeu pouco destaque, ao ponto de muita gente nem mesmo se lembrar de seu lançamento neste começo de dezembro. A parceria é das grandes, com a Dontnod aliada à Bandai Namco para a chegada do título, enquanto a própria desenvolvedora deixa um pouco sua zona de conforto, investindo em uma aventura que chega às nossas mãos de forma completa, com começo, meio e fim, ao contrário do formato episódico a que ela nos acostumou.

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Jogando, porém, dá para chegar a algumas conclusões sobre o assunto. Twin Mirror passa longe da sensibilidade cheia de choques e momentos difíceis de Life is Strange, e quando analisado dentro do portfólio da Dontnod, se assemelha mais ao lançamento mais recente, Tell Me Why. É um game que mistura a busca por respostas com questões íntimas, envolvendo sentimentos e um passado obscurecido. O novo, porém, não chega perto da qualidade do anterior, que parece ter recebido boa parte do foco da desenvolvedora neste ano.

Não que Twin Mirror seja ruim, mas muitas vezes, ele parece desleixado. São diferentes aspectos para indicar isso, com detalhes como placas de identificação de funcionários de uma cafeteria escritas em Comic Sans ou certos problemas nos sistemas decisórios, que exibem opções repetidas ou cujos andamentos não necessariamente são indicados claramente pelo texto a escolher. Existem claros problemas de sincronia labial e pop-ins, com texturas aparecendo e desaparecendo o tempo todo aos olhos do jogador.

Bugs aparecem o tempo todo, também, para derrubar aquele envolvimento em uma história completamente mundana, outra marca da produtora. É interessante notar como esse enredo pode acontecer em qualquer cidade pequena, assim como os segredos ocultos sempre estão por aí, mas acabamos reparando mais no celular voados de um personagem ou no distintivo 2D claramente mal feito no peito do policial, enquanto o confrontamos pela violência contra um morador de rua. O cuidado com os detalhes acabou faltando neste título, em mais uma demonstração de que seus criadores pareciam estar ocupados demais para realizar um trabalho que merecia, sim, mais atenção por suas qualidades.

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A maior das falhas, porém, está na jogabilidade, e acomete algo essencial em um game investigativo e narrativo. Boa parte dos mistérios e ações de Twin Mirror acontece por meio de interação com itens, mas chama a atenção negativamente um truncado sistema em que um botão permite ler um documento, por exemplo, e outro faz com que Sam, o protagonista, teça comentários que, muitas vezes, são até mais importantes que o conteúdo em si.

Pior de tudo, porém, é o próprio posicionamento da câmera para interagir com tais objetos. Nos momentos de análise, Twin Mirror assume uma visão em primeira pessoa, mas nem sempre o que está no centro é destaque, e o jogador acaba tendo de se movimentar erraticamente para encontrar o ponto exato de pressionar o botão, que nem sempre é óbvio. Muitas das situações do game envolvem encontrar todas as pistas para seguir adiante com a investigação, e nelas, isso é bem ruim; nos poucos momentos em que temos que agir rápido com isso, é pior.

Dilemas e traumas

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Twin Mirror não é uma história de detetive convencional — e na realidade, o game ocupa toda sua primeira hora, das cerca de seis necessárias para finalizar, fazendo tudo menos isso. Sam Higgs, nosso personagem, é um homem transtornado e odiado em sua cidade natal, com exceção de alguns amigos próprios os quais ele, também, deixou de lado. Nick, o melhor deles, está morto, e isso o leva de volta a Basswood, ainda que ele deseje estar em qualquer outro lugar, menos lá.

O fator misterioso da morte do colega é pincelado pela filha do falecido, enquanto todo o restante do velório é ocupado por problemas pessoais, acertos de contas e reencontros. A pequena cidade tinha uma economia que girava em torno de uma mina de carvão, fechada após uma reportagem de Sam; sua ex-namorada, a quem ele chegou a pedir em casamento, tinha um relacionamento com o melhor amigo; tem gente de arma na cintura, antigos mineradores na miséria e uma sensação de que tudo está absolutamente decrépito após o nosso envolvimento. No clichê, Sam parece ser daqueles que destrói tudo o que toca.

Justamente por isso, ele se fecha nos próprios pensamentos, no que chama de Palácio da Mente, mas não é como se encontrasse conforto por lá. Ele revisita velhas memórias e tenta encontrar sentido em fatos do passado enquanto, na realidade, sua consciência se materializa na forma d’Ele, uma espécie de grilo falante das histórias de Pinóquio, mas que pode funcionar como a voz da razão ou um grande desestímulo, motivado pela autopreservação, nos momentos em que o protagonista precisa encarar duras verdades ou agir de forma sincera, ainda que dolorosa, com seus antigos amigos.

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Em meio a tudo isso, Sam acorda de ressaca e com a camisa manchada de sangue, percebendo que, por mais que tente não se envolver ou fazer de conta que os eventos de Basswood fazem parte do passado, ele está envolvido até o pescoço. Inicia-se, então, a tal história de detetive de que falamos no início, mas com um instigante molho de pessoalidade e dificuldades de relacionamento, além da própria proximidade com os personagens e ocorridos, que torna tudo um bocado mais interessante.

É, também, mais um exemplo do ponto fora da curva para a Dontnod, que parece focar mais na investigação e menos na decisão, ainda que elas sejam, sim, bastante importantes. Diálogos mudam de acordo com as escolhas feitas pelo jogador e até a rudeza em cortar um popular que fala demais e não vê Sam há bastante tempo pode interferir na coleta de informações, ainda que Twin Mirror deixe claro quais são seus momentos decisivos, o que acaba estragando um pouco a magia.

Também depõe contra essa história teoricamente intrincada a falta de criatividade em alguns enigmas, como o cofre cuja senha está localizada logo ao lado ou a busca por uma senha óbvia para acessar o computador do editor do jornal, envolvendo, apenas, vasculhar a mesa dele. Outros puzzles chamam a atenção, como o da centopeia, que faz bom uso de características únicas da plataforma usada para jogar Twin Mirror, ainda que não seja o mais complexo e intrigante dos quebra-cabeças.

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Chamam a atenção, também, a montagem de cenas no Palácio Mental, com Sam e Ele recriando momentos importantes, como a morte de Nick ou uma briga de bar que pode ter levado ao assassinato, com base em provas coletadas pelo local. É como se os protagonistas e o jogador estivessem trabalhando juntos na validação de hipóteses e criação de cenários — é um bocado frustrante que apenas uma resposta seja possível, mas o processo até ela é bem agradável e interessante.

Também frustra um bocado a própria presença de Sam, um personagem que chega a se tornar detestável em alguns momentos da trama. Para um jogo como Twin Mirror, cuja premissa é ser envolvente e carregar o jogador pela história, essa é uma falha grave, pois o protagonista é, logicamente, o centro dessa história, mas você não poderia se importar menos com a apatia e a falta de cuidado dele. Em um determinado momento, inclusive, a decisão para avançar a história é das piores, mas o usuário se vê obrigado a traçar um plano para que ela aconteça ainda assim. Não é a toa que o jornalista é tão odiado na cidade, afinal de contas, ele não ajuda ninguém a gostar dele.

Linha da vida

Dentro do Palácio da Mente, Sam também enfrenta seus próprios demônios e, aqui, estão os momentos mais diferentes não apenas de Twin Mirror, mas também para a própria Dontnod. Cenas de perseguição entre espelhos e puzzles ambientais com o Ele são alegorias da própria jornada e inquietude do protagonista enquanto remexe um caldo no qual ele não queria enfiar a colher. Entre referências claras a jogos como Control e The Evil Within, se desenha um quadro de mentalidade perturbada, que também devemos explorar tanto quanto os assassinatos de Basswood.

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Algumas cenas demoram demais e outras investem em uma repetição desnecessária de conceitos, mas é nessa alegoria que estão as cenas mais memoráveis de Dontnod, principalmente na primeira metade do título. Por aqui, também, passa a jornada de aceitação e mudança do próprio Sam que, aos poucos, percebe que fugir foi a pior das decisões, levando, em maior ou menor grau, aos eventos nos quais, agora, ele se vê relutantemente envolvido.

Quando se olha por esse ângulo, dá para perceber que a tentativa de jogar outro esporte, pela Dontnod, também acompanha alguns dos princípios mais básicos dos games da empresa. Temos a sempre boa jornada de mudança, por dentro e para quem está em volta, enquanto o fio do mistério acaba se provando só mais um, e muitas vezes, nem mesmo o mais importante, ainda que seus eventos tenham um impacto altamente pessoal.

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Twin Mirror poderia ser o melhor título da empresa, ou pelo menos estar no mesmo nível de Tell Me Why ou Life is Strange não fossem todas as falhas técnicas e as dificuldades de jogabilidade que tornam essa história com aderência mais complicada, como se assistir a ela fosse mais desejável do que, efetivamente, colocar as mãos e alterar a trama. São diferentes finais e andamentos graves que podem ou não acontecer, mas, a bem da verdade, com tantos bugs, você não terá vontade de recomeçar tudo.

Ainda assim, é de se chamar a atenção o silêncio da Bandai Namco e da própria produtora quanto ao game, o que pode resultar na ideia de que algumas das iniciativas daqui não funcionaram diante de eventuais recepções frias. Não é o caso — as ideias são boas, como sempre se espera da Dontnod, mas faltou cuidado, algo que nunca é esperado de uma empresa desse tipo. Esperemos, então, que esse seja um início de algo diferente, capaz de melhorar aquilo que, na média do trabalho da produtora, vale sua atenção.

Twin Mirror foi lançado no dia 1º de dezembro para PC, Xbox One e PlayStation 4. No Canaltech, o jogo foi analisado no Xbox Series X, em cópia digital gentilmente cedida pela Bandai Namco.