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Análise | Detroit: Become Human acerta em cheio com trama e personagens críveis

Por| 04 de Junho de 2018 às 10h02

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Quantic Dream/SIE
Quantic Dream/SIE

Como seria um mundo em que nós, humanos, tivéssemos de conviver lado a lado com androides inteligentes e pensantes? Conseguiríamos tratá-los como iguais ou seríamos tiranos a ponto de subjugar e escravizá-los? Detroit: Become Human traz questionamentos como esse à pauta e nos faz pensar como será o futuro que estamos vendo ser moldado diante dos nossos olhos.

Já não é de hoje que o tema é apresentado para nós. Blade Runner, Exterminador do Futuro, Inteligência Artificial, Eu, Robô e inúmeras outras obras audiovisuais e literárias exibiram suas versões de um futuro compartilhado com máquinas. Ao contrário da maioria delas, a nova produção de David Cage e da Quantic Dream exclusiva para PlayStation 4 assume um tom mais intimista e menos ameaçador ou apocalíptico, nos levando a refletir sobre nossas ações, crenças e, acima de tudo, a condição humana.

Jornada filosófica

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Detroit, 2038. O mundo testemunhou o nascimento e ascensão da CyberLife. Empresa mais rica do mundo e a primeira a ser avaliada em US$ 1 trilhão, ela fez fortuna graças à criação de seu fundador, Elijah Kamski, que planejou, construiu e deu vida a androides equipados com inteligência artificial capazes de cuidar dos afazeres domésticos e servir os humanos de acordo com suas necessidades.

A ideia por trás disso era fazer com que homens e mulheres aproveitassem mais a vida, deixando tarefas maçantes e rotineiras nas mãos dos robôs. Afinal de contas, quem raios gosta de lavar a louça, passar a roupa e varrer a casa, ainda mais depois de um dia inteiro de trabalho? No papel, tudo lindo e maravilhoso. Não demorou muito até a CyberLife crescer os olhos e perceber que era possível faturar muito, mas muito mais com a fabricação e venda de tipos diferentes de androides, cada um especialista em uma ou mais tarefas.

Logo surgiram androides que tomaram o emprego de cuidadores, porteiros, garis, seguranças, vendedores, garotas de programa (é isso mesmo) e até militares — só os Estados Unidos encomendaram 2 milhões de soldados-robô à CyberLife. Como você deve imaginar, o efeito colateral disso foi a explosão na taxa de desemprego (cerca de 37% dos norte-americanos estão desempregados no jogo) e o ódio cada vez maior das pessoas em relação aos robôs. Afinal de contas, são eles os responsáveis pela miséria, pela depressão e pelo caos social que se instaurou, correto?

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Isso pode fazer sentido em alguma medida, e a saída mais simples é, de fato, culpar as máquinas e fazê-las "pagarem" pelo que estão fazendo. Seguindo essa lógica, em Detroit, inicia-se uma onda de protestos, maus-tratos e atrocidades contra os robôs.

Mas se esse problema pudesse ser resolvido de uma forma tão simples e banal como essa, Detroit: Become Human perderia sua razão de existir. Ao invés disso, o jogo nos convida a analisar as coisas pela ótica dos oprimidos e a refletir sobre a existência deles (e a nossa).

Se os robôs não pediram para serem criados, tampouco desempenharem as atividades que fazem, quem seriam os culpados por tudo isso? Será que, enquanto seres vivos e no ápice de uma crise existencial em um mundo dominado pelo capitalismo voraz, em que a produtividade é um imperativo inquestionável, os humanos simplesmente desistiram de tudo e, de alguma forma, transferiram sua (falta de) liberdade para os androides? Pior do que isso, como será que essas máquinas se sentem em relação a isso, à sua condição e aos maus-tratos? Elas sentem alguma coisa? Elas são seres vivos?

São perguntas complexas, filosóficas, cujas respostas são esboçadas e ganham forma ao longo das 15 horas de jornada de Detroit: Become Human.

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Personagens e roteiro multifacetados

Como falei, o jogo nos convida a sentir a angústia causada por todas essas questões a partir do ponto de vista dos androides. Ao todo, controlamos três personagens (todos robôs) diferentes, cada um com características, funções e motivações bem peculiares.

Connor é um modelo RK800, recém-lançado pela CyberLife para auxiliar a força policial na busca e apreensão de divergentes — nome dado às máquinas que, por um suposto mau funcionamento de software, começaram a agir por conta própria, com vontades, ações e comportamentos próprios, sem obedecer aos humanos. O que mais chama atenção em seu arco é justamente as questões morais relacionadas a investigar, perseguir e "dedurar" robôs que, como ele, são alvos de preconceito e agressões pelo Homem.

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Modelo AX400, Kara é um androide mais tradicional, especialista em lidar com as tarefas de casa e cuidar de crianças. É o que a dócil e solitária menininha Alice tem de mais próximo de uma mãe; por isso, Kara faz de tudo para protegê-la dos abusos de Todd, um drogado metido a macho alfa que vive no fundo do poço.

Finalmente, Markus é um modelo feito sob medida por Kamski para cuidar de Carl Manfred, um pintor renomado e amigo íntimo do fundador da CyberLife. Neste arco, homem e máquina têm um relacionamento de muito respeito, a ponto de Carl dizer a Markus para que ele "nunca deixe ninguém dizer o que você deve ser". Com um intelecto mais bem desenvolvido, por assim dizer, é Markus o responsável por liderar a insurgência de robôs rebeldes e insatisfeitos que dá a tônica a Detroit.

Também vale destacar, aqui, o protagonismo do roteiro escrito por David Cage. Embora isso seja algo esperado de um jogo como este, o que vemos aqui é um Cage mais experiente, maduro e ciente das decisões que toma em seu texto. Prova disso é que o título se mantém coeso e coerente ao longo de praticamente toda a jogatina, com as tramas se aproximando e sendo costuradas aos poucos, à medida que tomamos nossas decisões e avançamos na história.

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À exceção de alguns poucos capítulos mais lentos (dois ou três de um total de 32), Detroit mantém um ritmo narrativo empolgante e explora bem os dilemas de cada personagem. É nesses momentos, inclusive, que o jogo mostra sua melhor forma, nos colocando diante de questões morais dificílimas e que tanto podem mudar o rumo da narrativa quanto afetar a personalidade de cada personagem.

Isso contrasta bastante com o que aconteceu em Beyond: Two Souls, onde suas decisões pareciam afetar a história de uma maneira artificial; em Detroit: Become Human elas têm um impacto maior no rumo das coisas. É algo que Cage e a Quantic Dream quiseram deixar à mostra para o jogador ao exibir diagramas narrativos ao término de cada capítulo.

É nesses diagramas que você consegue ver e analisar o caminho e as decisões que tomou, mas sem saber exatamente o que aconteceria caso tivesse tomado uma decisão diferente. Em alguns capítulos, entretanto, é possível ver que a jornada do personagem poderia ter acabado mais cedo, com ele morrendo ou não, com uma missão dando certo ou não. Para ter certeza do que realmente aconteceria, só refazendo o capítulo — ou talvez toda a história.

Nessas incursões para desbravar as diversas facetas da história é que temos uma noção maior do trabalho primoroso e meticuloso de Cage. Obviamente que as possibilidades não são infinitas, mas ainda assim há uma quantidade absurda de coisas que podem ser feitas, e de decisões e rumos que a história pode tomar a partir da junção disso tudo. De um androide cuidadoso e zeloso você pode, aos poucos, se tornar num tirano inconsequente; ou ainda perder a razão e passar por cima de tudo e todos, sejam eles amigos ou não, para alcançar seus objetivos. Ou, quem sabe, encontrar o chapéu da viagem e acabar batendo as botas mais cedo do que planejava.

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Gráficos soberbos, jogabilidade ordinária

Contexto, história e personagens são ótimos convites para qualquer pessoa experimentar Detroit: Become Human, mas nenhum deles funciona tão bem como isca quanto os gráficos. Com sua nova engine, a Quantic Dream fez um trabalho caprichadíssimo, registrando à perfeição as expressões de Jesse Williams, Valorie Curry e Bryan Dechart, que dão vida a Markus, Kara e Connor, respectivamente. É possível ver que eles estão determinados, frustrados, indecisos, pensativos, chateados e felizes apenas observando seus rostos.

E nem precisa ir tão longe assim no jogo para ver que rolou todo um cuidado especial no aspecto gráfico, não. Já no menu inicial dá para levar um susto, no bom sentido, com a naturalidade da androide que nos é apresentada.

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Esse zelo todo também foi aplicado na construção dos cenários e da ambientação. Efeitos de iluminação global e de profundidade associados a sombras e shaders de chuva e neve tornam tudo mais real e mais verossímil.

Unir esses detalhes às incontáveis possibilidades que o roteiro nos oferece faz esmaecer a estranha sensação de que estamos diante de um jogo que se passa por filme interativo. Embora muita gente ainda vá criticar Detroit por conta disso, a sensação que tive foi de estar imerso em uma narrativa muitíssimo bem arquitetada e que aqui e acolá me fazia sentir o peso de uma decisão errada que tomei — um desconforto que só se torna real quando acreditamos que verdadeiramente haverá uma consequência.

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Se os gráficos feitos com esmero ajudam a nos colocar dentro da história, o mesmo não pode ser dito da jogabilidade. Tudo bem que há mais objetos com que podemos interagir e alguns colecionáveis que ajudam a contextualizar e dão mais profundidade a tudo o que está acontecendo não apenas em Detroit, mas também nos Estados Unidos e até no Canadá. Mas, tirando isso, tudo permanece essencialmente igual.

Em 2018, as mecânicas empregadas pela Quantic Dream são as mesmas das inauguradas por Indigo Prophecy (Fahrenheit) em 2005. Toda a evolução da história se dá por respostas que surgem como escolhas na tela. Os Quick Time Events, odiados e praticamente abolidos nos tempos atuais, ainda desempenham um papel importante aqui, sobretudo nos momentos de ação. Isso sem falar nos controles travados e esquisitos e as movimentações estranhas que não receberam qualquer refinamento, passando uma sensação de desleixo ou de acomodação por parte da desenvolvedora.

Falho como os humanos

Apesar de não comprometer a experiência como um todo, esses problemas nos fazem ligar o desconfiômetro e perceber que, embora se apresente tão perfeito quanto um androide, Detroit: Become Human é tão falho quanto qualquer humano.

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No começo desta análise, falei que "o título se mantém coeso e coerente ao longo de praticamente toda a jogatina", e não foi ao acaso. Acontece que em alguns momentos aparecem alguns furos tão grandes que mais parecem buracos. Por exemplo: em determinado momento chegamos a um casarão em busca de ajuda; questionado sobre como descobriu o lugar, nosso personagem responde que "um amigo falou que você pode ajudar", quando isso, na verdade, nunca aconteceu.

Em outra situação temos de invadir as instalações de uma emissora de TV para cumprir uma missão. O plano é mirabolante, todo mundo sabe da rotina do local, para onde deve ir e como executar uma coisa e outra sem isso nunca ter sido discutido ou estudado por um minuto sequer. Deu na lata, é só executar e tá tudo certo.

Também incomoda a sensação de que muitas vezes o roteiro força a mão para que assumamos uma determinada postura e sigamos por um certo caminho. Não me entenda mal: as escolhas sempre serão suas, mas em alguns momentos é flagrante a insistência do texto para que você faça uma escolha específica e siga rumo ao melhor desfecho possível.

Outro aspecto que acaba sendo comprometido aqui é o ritmo narrativo, que é quebrado de uma maneira brusca na última hora e meia de jogo. Antes disso, Detroit: Become Human apresenta a trama, os personagens, seus dilemas e todas as questões expostas no começo desta análise com bastante naturalidade e pé no chão. Contudo, essa espontaneidade evapora quando nos encaminhamos para o desfecho.

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Nesse momento, o roteiro pisa no acelerador com força e chega até mesmo a marginalizar algumas situações e personagens que outrora foram apresentados com uma certa relevância. Sem qualquer explicação, eles acabam sem um desfecho, passando a sensação de que algumas ideias foram abandonadas e ficaram perdidas no meio daquela infinidade de ramificações. Quando isso não acontece, soluções "mágicas" surgem convenientemente para resolver o problema e tirá-lo do caminho.

Mas afinal, vale a pena?

É verdade que o gênero em que Detroit: Become Human se insere não agrada a todos, mas falo com tranquilidade que se você curte o estilo ou está disposto a jogá-lo terá uma experiência emocionante, única e inesquecível.

Apesar de tropeçar em alguns probleminhas aqui e acolá, este é o melhor roteiro já escrito por David Cage. A temática é extremamente atual e expõe um futuro que bate à porta. Mas tudo isso é um pano de fundo muito bem trabalhado e que, na verdade, encobre questões muito mais profundas e complexas sobre como reagimos ao que é diferente e a condição humana.

A sensação de que cada escolha nos leva a uma consequência aliada a um dos melhores gráficos desta geração e uma ambientação impecável nos faz imergir na narrativa e sair dela pensativos, chocados, felizes, tristes... Tudo depende de como você escreverá a sua história.

*Detroit: Become Human foi analisado com cópia cedida gentilmente pela PlayStation Brasil