Despreparo? Sexismo? Entenda por que a NASA cancelou o spacewalk feminino
Por Patricia Gnipper |
A primeira caminhada espacial protagonizada apenas por mulheres na história aconteceria nesta semana na Estação Espacial Internacional (ISS), mas a NASA acabou cancelando a ocasião por conta de problemas relacionados aos trajes espaciais disponíveis para uso na parte externa da estação — os chamados Extravehicular Mobility Unit (EMU). Desde então, a agência espacial vem sendo acusada, nas redes sociais, de ser despreparada, no mínimo, com outras pessoas até mesmo levantando questões envolvendo sexismo e preconceito de gênero. Contudo, questões de segurança e mobilidade estão envolvidas nessa decisão.
O spacewalk seria realizado pelas astronautas Anne McClain e Christina Koch, para dar continuidade à troca de baterias que ficam do lado de fora da ISS. McClain participou de uma caminhada espacial na semana passada ao lado do astronauta Nick Hague, ela usando um traje de tamanho médio e ele um traje de tamanho grande. A astronauta veio a público explicar que, somente após essa experiência, ela notou que, para seu porte, o traje mais adequado seria mesmo o de tamanho médio. Contudo, na ISS no momento há apenas uma unidade de traje deste tamanho, e Koch é ainda mais "compacta" do que McClain — portanto, para que o spacewalk feminino acontecesse, seriam necessários dois trajes medianos, coisa que a NASA não previu até que McClain passasse pela experiência, o que aconteceu no dia 22 de março, somente.
O tamanho médio é o menor traje que a NASA tem a oferecer, então não existe um "tamanho P" para Koch. Na ISS, há dois trajes médios, dois grandes e dois extra grandes; contudo, apenas uma unidade do médio e uma unidade do grande estão em condições de uso, com os demais servindo apenas para fornecer peças de reposição, pois já não são mais seguros para o uso em uma caminhada espacial. Para preparar um desses trajes desgastados, seria preciso cerca de 12 horas para haver um mínimo de segurança.
E "dada a agenda operacional muito ocupada a bordo da estação — as caminhadas espaciais e várias missões de reabastecimento que começarão a chegar em abril — as equipes tomaram a decisão de manter a agenda trocando os astronautas em vez de reconfigurar um traje espacial", declarou Stephanie Schierholz, porta-voz da NASA.
Como os spacewalks são sempre feitos por dois astronautas ao mesmo tempo, a caminhada programada para esta sexta (29) precisaria então ser feita com um traje grande e um médio (já que são os únicos disponíveis), só que com a experiência de McClain no spacewalk anterior, ela chegou à conclusão que seria arriscado demais se ela usasse o traje grande, deixando o mediano para Koch, que é ainda menor do que ela. Sendo assim, essa caminhada de amanhã será feita por Koch e Hague, com a última programada para 8 de abril então sendo feita por McClain ao lado do colega canadense David Saint-Jacques — as mulheres vestindo o traje médio, e os homens o traje grande.
McClain ressalta que "essa decisão foi baseada em minha recomendação", dizendo ainda que "líderes devem tomar decisões difíceis e tenho a sorte de trabalhar com uma equipe que confia em meu julgamento; nunca devemos aceitar um risco que possa ser mitigado, a segurança da tripulação e a execução da missão vêm em primeiro lugar". Sendo assim, a decisão de cancelar o spacewalk 100% feminino partiu da própria astronauta, não tendo sido uma decisão arbitrária por parte da NASA envolvendo preconceitos de gênero — como a agência vem sendo acusada nas redes sociais.
Detalhes relevantes quanto à prova de trajes espaciais
McClain treinou aqui na Terra, antes de ir à ISS, com dois trajes (um médio e um grande), e a NASA entendeu que ela poderia vestir o traje maior se necessário. Contudo, descobrir o tamanho ideal para ser usado por cada astronauta é uma tarefa mais complexa do que parece à primeira vista, indo muito além de fazer medições e provas aqui na Terra.
Nem sempre o encaixe de um traje espacial será o mesmo aqui na Terra e no espaço, e isso se deve em parte aos efeitos da microgravidade, com ausência de peso. Se um traje for grande demais, o astronauta no espaço pode sentir como se estivesse flutuando dentro dele, reduzindo sua capacidade de mobilidade, o que resultaria em menor precisão de movimentos (algo essencial em qualquer missão espacial delicada como é a troca de baterias da ISS). Só que esse espaço extra dentro do traje pode ser muito menos perceptível quando se trabalha na Terra com a ação da gravidade.
De acordo com um relatório de inspeção oficial, "os astronautas que não se adaptam confortavelmente ao tamanho dos trajes disponíveis podem ter mais problemas de acessibilidade; por exemplo, a temperatura é controlada através de um botão rotativo na frente do traje, o que significa que astronautas menores enfrentariam desvantagens visuais e mecânicas que limitariam sua capacidade de controlar adequadamente sua temperatura". Já usar um traje apertado demais pode causar até lesões nos ombros — ou seja, um traje inadequado representa riscos tanto à missão, quanto à integridade física dos astronautas.
E para complicar a coisa ainda mais, humanos costumam ficar mais altos no espaço. A própria McClain, depois de um teste de ajuste do traje espacial feito no dia 4 de março, notou que ela tinha crescido 5 centímetros desde que chegou à ISS — infelizmente, essa altura extra não foi o suficiente para que ela se acomodasse bem no traje maior.
Trajes antigos criados quando havia poucas mulheres no espaço
Outro problema que culminou no cancelamento do spacewalk exclusivamente feminino é justamente a divisão histórica desproporcional entre astronautas homens e mulheres indo ao espaço.
Quando os trajes em questão foram originalmente projetados para o programa dos Ônibus Espaciais há cerca de 40 anos, a NASA planejava oferecer uma gama variada de tamanhos para acomodar o maior número possível de astronautas. No entanto, com ordens de reduzir os gastos do programa, a agência precisou rever seus planos e acabou desenvolvendo apenas três tamanhos de trajes (médio, grande e extra grande), que seriam adequados para "a maioria dos astronautas".
Isso também pode ser interpretado como: eles acabaram construindo trajes que se adequariam ao homem comum, já que, na época, a maioria dos astronautas eram do gênero masculino. Então, em um contexto em que quase todos os astronautas eram homens, confeccionar EMUs para portes femininos seria um "gasto adicional", que foi cortado.
Em um relatório de 2017, inspetores da NASA documentaram que a agência "não fornece uma gama suficiente de tamanhos nos componentes dos trajes para acomodar astronautas cujo tamanho corporal pode não se aliar com as medições históricas", com essas "medições históricas" representando o grupo de astronautas de quarenta anos atrás. Só que, desde então, um número cada vez maior de astronautas mulheres se formou pela agência, com várias delas já tendo sido enviadas para a ISS. Peggy Whitson, por exemplo, astronauta aposentada da NASA que detém vários recordes de caminhadas espaciais, chegou a declarar que "como mulher, fazer caminhadas espaciais é ainda mais desafiador, principalmente porque os trajes são maiores do que a média das mulheres". Ou seja: no fim das contas, é mais difícil ser mulher até mesmo no espaço.
A turma de astronautas de 2013 (incluindo McClain, Koch e Hague, por sinal), foi a primeira da história da NASA a ter equilíbrio de número entre homens e mulheres. E mesmo seis anos após essa primeira turma que inaugurou uma era de maior equilíbrio entre gêneros na exploração espacial, a NASA não chegou a desenvolver novos trajes — e não o fará, não por preconceito de gênero, mas sim por questões orçamentárias envolvendo o governo.
O governo dos Estados Unidos pretende parar de financiar a Estação Espacial Internacional até o ano de 2025, sendo que a ISS é capaz de se manter operacional até 2028 sem que grandes manutenções e troca de componentes defasados sejam feitas. Ainda não se sabe se os EUA irão abandonar sua participação na ISS depois disso, ou se sua parte da estação será privatizada para que as empresas espaciais privadas administrem o laboratório espacial a partir daí.
Sendo assim, a NASA realmente precisa confeccionar trajes espaciais atualizados, não somente contando com tecnologias mais modernas, como prevendo uma variedade maior de tamanhos para acomodar, com segurança, qualquer porte de astronauta, homens e mulheres. Contudo, isso só deverá acontecer pensando em futuras missões espaciais, como o retorno da humanidade para a Lua, por exemplo, bem como a chegada de colonizadores em Marte.
Abaixo, você confere um infográfico elaborado pelo Space.com, mostrando com detalhes exatamente como funciona um traje espacial EMU igual aos modelos disponíveis na ISS: