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Filmes com apologia ao preconceito devem ser censurados ou não?

Por| 04 de Julho de 2020 às 22h15

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MGM
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No dia 8 de junho, o jornal Los Angeles Times publicou um texto de John Ridley, escritor e vencedor do Oscar de Melhor Roteiro Adaptado por 12 Anos de Escravidão. O título resume o texto e atinge até mesmo os leitores que não costumam passar das manchetes: “Ei, HBO, ...E o Vento Levou romantiza os horrores da escravidão. Tire-o da sua plataforma por enquanto”. O imperativo teve um efeito quase instantâneo e o título foi removido do catálogo, voltando a ser disponibilizado alguns dias depois, mas dessa vez com quatro minutos a mais, correspondentes a uma introdução explicativa.

A atitude da HBO foi considerada polêmica: afinal, é justo o que foi feito com ...E o Vento Levou? A decisão e o texto de Ridley são duas das muitas consequências do caso George Floyd e dos protestos Black Lives Matter, mas, para além do reconhecimento de uma obra como racista, é necessária a reflexão sobre um assunto que se arrasta há tempos. O mutualismo entre arte e vida tem como resultado a produção de obras que podem refletir o pensamento de um período, de uma pessoa, de um grupo social, enfim, de quem a produz. O cinema, especificamente, está repleto de títulos controversos e não é difícil encontrar, além de racismo, casos de pedofilia, xenofobia, machismo, gordofobia, apologia ao estupro e toda sorte de atitudes moralmente condenáveis.

E se o que aconteceu com ...E o Vento Levou fosse aplicado a essas outras obras? É justo censurar uma obra de arte? Muitos desses filmes são grandes clássicos da história, mas o que é mais importante: o conteúdo ou a forma? Vamos conversar um pouco sobre isso.

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Os argumentos

Após pedir para que o HBO Max considerasse a remoção do filme, Ridley explicou seu posicionamento: “Como cineasta, entendo que os filmes são frequentemente instantâneos de momentos da história. Eles refletem não apenas as atitudes e opiniões dos envolvidos em sua criação, mas também os da cultura predominante”. Com relação a ...E o Vento Levou, o autor disse que o filme não é apenas inadequado, mas “é um filme que glorifica o sul [dos EUA] pré-Guerra Civil. É um filme que, quando não está ignorando os horrores da escravidão, faz uma pausa apenas para perpetuar alguns dos estereótipos mais dolorosos das pessoas de cor”.

Embora haja uma grande concordância com esse argumento, o posicionamento de Ridley está longe de ser um consenso. Gianfranco Marchi, do Cineclube Natal, diz ver bons argumentos de ambos os lados, mas acredita que “a atitude da HBO, especificamente, se mostra mais oportunista e menos consciente socialmente” e relembra que o racismo faz parte do período histórico no qual a história se desenrola.

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A ideia de que pode ter sido uma jogada comercial da HBO é a aposta do crítico e colunista digital Igor Gomes. "Sabemos que ...E o Vento Levou possui sua dose de racismo tão característico da metade do século XX e o fato de a HBO retirá-lo do catálogo, à primeira vista, parece inclusive algo afim à luta, mas não é", explicou. "A HBO não é um movimento popular, é uma empresa que visa o lucro e que possui cada movimento calculado pela ótica do lucro. Retirar ...E o Vento Levou do catálogo foi puro oportunismo publicitário aproveitando esse momento de expressão."

Gianfranco ainda questiona “por que não fazer o mesmo com Conduzindo Miss Daisy? Ou com o mais recente Green Book: O Guia com sua narrativa ‘white saviour’?”, trazendo para a discussão a ideia ainda mais delicada de que um filme de 1939 está passando por isso, enquanto obras contemporâneas como Green Book: O Guia contam com versões mais sutis do racismo e ainda conseguem reconhecimentos como o Oscar de Melhor Filme na edição de 2019 da premiação.

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Levando em conta a correção monetária, ...E o Vento Levou é até hoje uma das maiores bilheterias da história e colecionou 13 indicações ao Oscar, além de ter recebido um Oscar técnico e outro honorário. Vale lembrar que Oscar não é parâmetro de qualidade, mas diz muito a respeito da popularidade de uma obra, além de ser um selo que faz com que mais espectadores se interessem em assistir a um determinado filme. A questão do Oscar revela também outros acontecimentos que vão além da qualidade cinematográfica e do sucesso do filme.

Hattie McDaniel, que interpreta Mammy em ...E o Vento Levou, foi a primeira afro-americana a ganhar um Oscar. Ainda antes, o popular galã Clark Gable (Rhett Butler no filme) chamou a atenção ao ameaçar boicotar a estreia do filme em Atlanta caso McDaniel fosse proibida de ir à première do próprio filme. Embora a segregação racial tenha vencido, o episódio marca uma das atitudes antirracistas que acompanharam o filme. Mais do que um filme com conteúdo racista, ...E o Vento Levou parece ter um papel importante na luta contra o racismo dentro e fora da indústria.

Ainda mais a fundo na reflexão

O doutorando em filosofia pela UFRN André Vinícius diz que é “uma questão muito delicada", mas que a simples exclusão não "parece uma estratégia de enfrentamento ao problema capaz de confrontar a fundo a perpetuação histórica do racismo”. É preciso refletir, ainda, sobre a diferença entre o racismo como conteúdo de uma arte e uma obra essencialmente racista. Enquanto o clássico O Nascimento de Uma Nação, título indispensável para os estudiosos de cinema pela genialidade técnica de D. W. Griffith, é um filme racista por exaltar a Ku Klux Klan e fazer uso de blackface, por exemplo, filmes como Django Livre têm a escravidão como tema, mas não são considerados racistas.

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“A questão parece residir no papel das imagens na formação de um racismo velado que coloniza nossas percepções mais ínfimas, de tal forma que até mesmo nós, que somos pretos, acabamos enxergando o mundo com as cores definidas pela branquitude”, diz Vinícius.

"Muito facilmente crescemos como se ignorássemos os lugares ocupados majoritariamente por atores e atrizes negras e a visão racista que transparece na construção fílmica, e quando vemos esses filmes sob um outro olhar, inclusive redefinido por um outro tipo de produção mais afirmativa, temos a experiência do 'choque'".

Ele ainda explica que filmes como ...E o Vento Levou precisam ser assistidos sob um ponto de vista crítico ao invés de serem apagados, pois "é preciso falar desses sentimentos e é preciso remeter a essas imagens um trabalho crítico muito sério ao invés de se recusar a vê-las".

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O apagamento de obras inadequadas pode ter consequências históricas seríssimas. É preciso compreender que o que foi feito é fato e não pode ser desfeito, mas pode ser criticado e analisado, e mesmo uma obra claramente racista pode servir para demonstrar como as coisas eram (ou são), desde que somada à conscientização de que, mais do que errado, é um crime. Um excelente exemplo do não-apagamento de um filme racista é a utilização que Spike Lee faz de O Nascimento de uma Nação em Infiltrado na Klan, em uma sequência na qual reconhece a importância da montagem paralela criada por Griffith, mas usa o racismo do filme para criticar e ridicularizar os membros da KKK.

O professor de arte Clayton Marinho também chama a atenção para as diferentes formas de se aproximar de uma obra de arte:

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"Há dois argumentos notórios para garantir qualquer obra de arte num espaço já constituído. O primeiro é o 'seu valor por si', isto é, sua autonomia da arte, aquela por meio da qual os especialistas pedem para observar a obra por ela mesma, por vezes acompanhada de um ajuizamento sobre o valor estético para o indivíduo, de um lado. O segundo é o valor histórico, traduzido como 'tradição', como documento histórico de um determinado pensamento e/ou tempo. De um lado, salva-se a obra pelos seus valores artísticos; do outro, salva-se pelo seus valores históricos. Em ambos, o anacronismo de nossas reivindicações é tomado como injustiça diante da obra (a arte-pela-arte) ou como valor imputado erroneamente a um tempo que não o concebia ou que possui outros 'valores' (história)".

Embora a aproximação crítica seja necessária, ela não é controlada. Não existe uma forma de garantir que cada espectador verá um filme preconceituoso da forma “correta”, mesmo se fosse possível dizer que existe um jeito certo de se aproximar de uma obra de arte, o que seria um absurdo em si. É possível que um filme racista alimente o racismo, assim como também é possível que uma obra atinja a vítima do preconceito como uma forma de violência.

Clayton atenta para esse aspecto ao retomar o filósofo francês Gilles Deleuze, que indaga, a partir de Friedrich Nietzsche, “Com que direito?”. “Com que direito podemos exigir que um grupo inteiro não se sinta atingido? Com que direito podemos dizer que eles não podem sofrer a injúria, ora porque a obra vive fora de seu contexto (vive, mas não existe simplesmente), ora porque ela é uma peça documental inestimável?”, questiona Clayton. “O valor moral ‘certo’ e ‘errado’ aqui não podem operar pela relação do ‘que é’, mas com essa pergunta mais justa: ‘com que direito?’”.

Qual a solução?

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A resposta não é simples e seria pretensão demais responder essa pergunta. Também é difícil imaginar que teremos a solução para isso em um futuro próximo, isso se tivermos. O pensamento ético e moral acerca das obras de arte acompanha o ritmo do desenvolvimento social sobre o assunto: tão logo uma atitude passa a ser entendida e generalizada como inadequada, vemos o reflexo disso nas produções artísticas e passa a ser mais fácil reconhecer e rechaçar um artista pelo conteúdo inadequado da sua obra.

As atitudes mais imediatas são as que têm trazido resultados mais poderosos, como a escolha de Patty Jenkins para dirigir Mulher-Maravilha, que voltou a ser um símbolo da luta feminista, e Ryan Coogler para dirigir Pantera Negra, um verdadeiro marco de representatividade no cinema e que mantém um eco na cultura popular, seja ao ser citado por outros artistas, seja ao ser incorporado como símbolo ou uma opção de consumo para pessoas negras, sobretudo crianças, que têm dificuldade em encontrar algo com o que se identificam no mercado de brinquedos ou materiais escolares, por exemplo.

“Se a HBO quer realmente ser engajada, que coloque em seus cargos diretivos mais pessoas negras e invista em diretores e roteiristas que contem a narrativa do povo negro. Deseja contextualizar? Pois então o faça através de uma série documental sobre a história do racismo na indústria, não apenas com uma introdução a um filme específico”, comenta Macchi. “Aliás essa é a melhor maneira de tratar os vários tipos de preconceitos que fazem parte da história de Hollywood, sejam de raça, gênero, religião etc. Já pensou se fossem suspender todos os filmes misóginos do catálogo da HBO? Pois é”.

"A venda de ...E O Vento Levou disparou na Amazon após isso, a versão redisponibilizada pelo HBO Max sem dúvida baterá recordes de streaming, mas onde está o incentivo da HBO aos produtores, diretores e roteiristas negros? É assim que uma empresa desse porte deve demonstrar seu antirracismo, não com atitudes como essa, que são oportunistas, visando sempre o lucro, como se ainda estivéssemos nos campos de algodão servindo de ferramentas", concorda Gomes.

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A verdade é que não há e provavelmente nunca existirá uma resposta definitiva. O reconhecimento das minorias passa pelo entendimento de que os seres humanos são diversos e estão em constante mudança. A todo momento uma nova forma de preconceito surge, mas também surgem formas de combatê-la. É possível, inclusive, que obras preconceituosas sejam feitas sem que a intenção seja de fato alimentar um preconceito e, diante do reconhecimento do erro, o artista, que é uma pessoa, também tenha o direito de retratação. Um exemplo disso é o ator Paulo Gustavo, que, após ser acusado de racismo por usar blackface na caracterização da personagem Ivonete em 2016, em junho cedeu seu perfil no Instagram para a filósofa Djamila Ribeiro.

No caso de obras antigas como ...E o Vento Levou, Vinícius explica que “é sempre importante contextualizar e fornecer informações que atualizem os filmes a um novo saber político constituído a partir do trabalho crítico, bem como descentralizar o espaço majoritário dessas grandes produções”. Quanto ao futuro, se ainda continuaremos produzindo obras que reproduzem preconceito, Clayton é mais incisivo ao indicar o papel da arte e, portanto, do cinema: "A perspectiva é essencial, e nós precisamos entender que qualquer obra (por mais genial e perfeita, importante e histórica) não vale uma vida; não vale a injúria a uma vida", explica. "Se uma arte, ao invés de permitir um mundo menos cruel e mais alegre para todos, inclusive para os que sempre faltam, produz ou propaga a crueldade, nas suas formas mais veladas e sutis, ela nunca valeu a pena, e, portanto, não tem direito algum a existir".

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No Brasil, a discussão também é antiga e remonta principalmente a um dos escritores mais icônicos da nossa cultura: Monteiro Lobato. Considerada racista, mas igualmente uma das melhores produções infanto-juvenis, a obra de Lobato é questionada, sobretudo por pedagogos: ela deve ser estudada e ensinada nas escolas? A pergunta se debruça principalmente sobre a produção mais popular do autor, O Sítio do Pica-pau Amarelo, que contém trechos que descrevem a Tia Nastácia como “macaca de carvão” e “carne preta”. Outro exemplo bastante popular na nossa cultura é o das novelas de Manoel Carlos, em que, além de as empregadas serem geralmente negras, ainda têm seus papéis reduzidos a mecanismos de roteiro, não ganhando maior significância dentro da trama.

E você, o que acha que deve ser feito com essas obras? Removê-las para que não tenham mais efeito sobre o público? Inserir mensagens de alerta sobre o conteúdo? Ou não fazer nada a respeito? Deixe nos comentários a sua opinião sobre como esse problema deve ser enfrentado e sobre o papel da arte no combate aos preconceitos.