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Crítica Espiral - O Legado de Jogos Mortais | Uma intro com muito potencial

Por| Editado por Jones Oliveira | 10 de Junho de 2021 às 14h00

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Paris Filmes
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Espiral - O Legado de Jogos Mortais chega com um tremendo peso nas costas: os filmes da franquia original ficaram muito conhecidos pela espécie de pornô gore que apresentaram ao longo de oito volumes (se incluirmos o filme de 2017), além de ter entrado para história como uma das franquias de terror mais bem-sucedidas de todos os tempos. Espiral, no entanto, é um spin-off que faz justiça ao gênero que não pôde ser tão explorado no início pelo baixíssimo orçamento de Jogos Mortais.

Além disso, nossa memória não deve retomar apenas o body horror das armadilhas de Jigsaw, que certamente impactaram a nossa mente, mas também ajudaram a desviar a atenção do público para o que se desenvolvia nas entrelinhas. Espiral, portanto, é muito mais um spin-off do lado detetive de Jogos Mortais e deixa o horror um pouco de lado. Ainda assim, o gore está lá, mas desta vez ele é muito mais fundamentado e serve ao conteúdo, não sendo a atração principal da obra. Com isso, o novo filme se aproxima muito mais de um clássico que é uma forte influência da franquia: Seven: Os Sete Crimes Capitais (1995), de David Fincher.

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Atenção! A partir daqui, a crítica pode conter spoilers.

Comparações

Apesar de eu ter citado Seven, as relações não devem passar muito das conexões, isso porque pode ser injusto comparar Espiral com qualquer coisa que foi feita até agora, já que o filme se coloca como o início de uma nova história. A comparação qualitativa fica ainda mais injusta se lembrarmos que Fincher já é um dos grandes diretores da história do cinema, enquanto James Wan (diretor do primeiro Jogos Mortais) foi um dos cineastas responsáveis por sedimentar a direção de Fincher como algo que merece ser homenageado.

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Estamos vendo um processo artístico se firmar e passar de uma geração a outra. O que Fincher e A Bruxa de Blair (outra grande inspiração de Wan) fizeram não pode ser ofuscado por Jogos Mortais, porque sempre são reverenciados por esta franquia, assim como inúmeros outros títulos que foram homenageados, inclusive através das armadilhas da franquia original, com direito a “versões” de mortes que vimos no Suspiria de Dario Argento (arames enfarpados), em Hellraiser: Renascido do Inferno (ser despedaçado por diversos ganchos vindos de todas as direções) ou em uma das maiores raízes do terror ocidental, Edgar Alan Poe (o pêndulo, claro).

Embora esse nível de referência a clássicos não se repita tanto em Espiral, isso diz muito sobre o spin-off. O novo filme não tem mais a direção de Wan, mas conta com a mão de Darren Lynn Bousman, que dirigiu Jogos Mortais 2, Jogos Mortais 3 e Jogos Mortais 4, o que certamente lhe garante um bom conhecimento interno do funcionamento do universo. Podemos questionar seu estilo de direção ou dizer que não nos agradou em comparação à direção de Wan, mas pode ser pretensioso demais dizer que ele não fez um filme digno dos clássicos.

Espiral não quer ser Seven, mas, assim como todos os demais Jogos Mortais, tem uma tremenda inspiração no clássico. Além disso, o novo longa-metragem parece estar muito mais interessado em trazer outra parte da franquia à tona, o que pode decepcionar profundamente quem estava esperando mais mortes bizarras e vai acabar encontrando um drama policial complexo interrompido por um pouco de gore. Não podemos dizer que o filme não avisou: o subtítulo em português e a versão original From the Book of Saw ("Do Livro de Jogos Mortais", na tradução literal) avisam que se trata de uma nova vertente, inspirada na saga John Kramer. Mas não é John Kramer, portanto é necessário um filme completamente diferente.

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Ainda além, precisamos considerar o processo de feitura dos filmes. Jogos Mortais sobreviveu graças à criatividade (e esforço) de Leigh Whannell e James Wan. O processo foi tão complicado que algumas das características estéticas do primeiro filme não eram exatamente intencionais, tendo surgido como fruto da necessidade de preencher espaços para os quais não haviam filmagens. A montagem, felizmente, acabou ajudando no terror, mas já sabemos há muito tempo que esse não é um gênero muito exigente nesse sentido. Para fazer um filme de detetive, as necessidades são outras.

Espiral teve alguma moral para conseguir um orçamento inédito para a franquia: US$ 40 milhões, um salto impressionante diante dos US$ 4 milhões de Jogos Mortais 2, que viraram US$ 10 milhões ao longo da franquia, chegando a US$ 20 milhões em Jogos Mortais: O Final. Retrospectivamente, o bastante criticado Jogos Mortais: Jigsaw parece ter feito milagres com seus US$ 10 milhões. O salto qualitativo das possibilidades financeiras é nítido no spin-off.

Do Livro de Jogos Mortais

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O subtítulo de Espiral nos dá uma pista do que provavelmente só descobriremos no decorrer da nova franquia. John Kramer é o cerne da saga de James Wan, mas foi nas mãos de Darren Lynn Bousman que vimos Jogos Mortais se desenvolver como um verdadeiro quebra-cabeças metalinguístico, fazendo uma autorreferência à “peça” que Jigsaw remove da pele de suas vítimas e que rende seu apelido, que significa “quebra-cabeças” em inglês.

Ao longo de sete anos é mais difícil de perceber o quebra-cabeças que é a montagem de toda a franquia, com personagens do primeiro filme retornando no último para a maior revelação de todas. Bousman começa indicando que o filme é só a primeira peça de um quebra-cabeças surpresa que torço muito para que nos leve a um novo nível de Jogos Mortais.

Espiral tem esse potencial todo. O primeiro impacto certamente foi o visual, sobretudo para quem acompanhou a divulgação desde o princípio, quando o primeiro pôster trouxe uma utilização realmente interessantede Teal & Orange, efeito fotográfico com tons de verde-azulado e laranja geralmente utilizado em blockbusters.

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Embora possa soar como uma aposta perigosa, gosto de ler esse pôster como a entrada da franquia no mundo dos blockbusters: apesar de ter sido um imenso sucesso, Jogos Mortais sempre teve a alma trash. Espiral abandona essa raiz e permite que a nova franquia pense novas possibilidades para as quais o novo filme é apenas um prólogo.

E o Chris?

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Ame ou odeie o Chris, ele é melhor que qualquer ator ou atriz da franquia Jogos Mortais (excetuando, claro, Tobin Bell, que já entrou para o panteão dos grandes vilões/anti-heróis do terror). O elenco ainda conta Samuel L. Jackson sendo Samuel L. Jackson (o que também é uma homenagem metalinguística e crítica à carreira do ator) e com Max Minghella, que nos engana mais ou menos como fez em The Handmaid's Tale: enquanto na série não conseguíamos saber se ele era aliado ou inimigo da protagonista, no filme ele nos engana bastante ao bancar o mocinho inexperiente que se revela serial killer.

Essa revelação, inclusive, pode ser antecipada com alguma facilidade (que deve ser ainda maior para os fãs de filmes de detetive), mas isso diz muito mais sobre a fragilidade do roteiro de Josh Stolberg (Piranha 3D) e Pete Goldfinger (Jogos Mortais: Jigsaw) do que sobre a atuação de Minghella, perfeito ao bancar o “vilão” perfeitinho, traumatizado e que realmente considera estar certo, enquanto a sociedade ao seu redor não vê as virtudes do seu trabalho. Um alvo apetitoso para o verdadeiro herdeiro Jigsaw, Dr. Lawrence Gordon. Inclusive, seria um deleite poder ver o retorno de Cary Elwes, hoje um ator muito mais experiente e que nos deixou na mão com o futuro após a revelação da natureza do seu personagem lá em 2010.

Além do ótimo trabalho de Minghella, nossa atenção também é distraída das pistas da sua dupla vida por Chris Rock, cujo personagem age como um ímã da nossa atenção ao ficar cada vez mais encurralado. A projeção vocal de Chris Rock, seu flow cômico e seu posicionamento dramático como pistoleiro solitário ajudam a nos manipular na direção do que é o grande truque do ilusionismo (pai do cinema). Em outras palavras, a escalação de atores criou a química perfeita para potencializar a imprevisibilidade do final nos fazendo focar no que era efeito colateral, enquanto diversas pistas eram jogadas na nossa cara e, assim como Zeke (Rock), não percebíamos o que estava diante dos nossos olhos.

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Pigs

A escolha do politizado Chris Rock também não é gratuita, e quem viu seus shows stand up sabe que o comediante não pega leve quando o assunto é racismo. Isso transborda em seu personagem, que amplia o discurso do policial negro, um detalhe que permeia toda a franquia Jogos Mortais, basta um olho atento para notar. Espiral escancara o subtexto crítico da franquia original e isso é o que há de mais significativo na nova franquia.

Embora tenha sido gravado antes da amostra de apocalipse que estamos vivendo, é sensato imaginar que, após presenciarmos tanta violência e uma pandemia, não é momento para nos divertirmos com imagens gráficas de pessoas sendo estripadas. Nosso psicológico não está mais em condições para isso e é interessante ver como Espiral ficou ainda mais significativo com o adiamento da sua estreia. A produção é anterior ao Movimento Black Lives Matter, mas ganha força ao somar mais uma voz como registro de uma era. O isolamento de Zeke no Departamento de Polícia ajuda a expor a realidade de policiais negros que tentam remar contra a maré, assim como vemos de uma forma mais leve, mas não menos incisiva, em Brooklyn 99.

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É delicioso também como o filme recicla os estereótipos do bom e do mau policial. Jogos Mortais trazia o estereótipo do bom policial das séries televisivas e os tornou vilões em seu contexto, fazendo uma crítica complexa (e enviesada) à classe policial. Em Espiral, a denúncia não recai necessariamente sobre um estereótipo racial, já que o pai de Zeke também é revelado como um policial corrupto, mas diz respeito a uma velha guarda (exposta também pela direção de arte meio retrô) que não deixa de agir segundo antigas decisões que, hoje, já se provaram inadequadas, mas seguem sendo executadas de acordo com a conveniência pessoal de cada policial. O filme nos mostra, inclusive, o esteriótipo policial a partir do qual são forjadas as caricaturas Hitchcock (Dirk Blocker) e Scully (Joel McKinnon Miller) de Brooklyn 99. O que o Jigsaw deste novo filme pede é o mesmo que foi pedido nas ruas após os trágicos eventos envolvendo George Floyd: uma renovação da classe policial dos EUA.

Com isso, os porcos também foram ressignificados. Em Jogos Mortais, os animais remetem ao ano do porco, período do calendário chinês para o qual John Kramer havia planejado o nascimento do seu filho, cuja perda rendeu o trauma que originou Jigsaw. Em Espiral, o ícone precisava ser repetido, porque faz parte da mitologia do universo (assim como o boneco, as serras, a espiral vermelha etc.), mas obviamente precisava ser ressignificado para um novo Jigsaw. O trocadilho esteve na nossa cara o tempo todo: “pigs”, em inglês, é uma gíria (geralmente depreciativa) para policiais.

Para não dizer que tudo é interessante e potencialmente incrível, a voz do novo Jigsaw é decepcionante por ser menos ameaçadora e quase cômica às vezes. No entanto, há um quê de “voz do Google” distorcida, que pode ser bem interessante para os futuros desdobramentos da história, sobretudo se lembrarmos que um dos maiores vilões da franquia foi revelado justamente por sua voz e faria todo sentido a utilização de uma voz que, quando revelada, mostrará outra coisa que não o procurado Jigsaw.

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Espiral - O Legado de Jogos Mortais não é uma obra-prima como é Jogos Mortais, mas tem muitos bons ingredientes para desenvolver uma franquia spin-off realmente digna e memorável. É um filme com gosto de introdução e que já parece determinada a brincar conosco ao longo de muitos anos. Para quem gosta muito do universo, vale a pena maratonar a franquia original para sentir melhor como o espírito de Jogos Mortais é reproduzido e muito respeitado nesta nova empreitada, que pode marcar a divisão entre os fãs do gore e os fãs do suspense do filme original.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Canaltech.