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Crítica | Todos os Meus Amigos Estão Mortos mostra a potência do slasher cômico

Por| 11 de Fevereiro de 2021 às 09h48

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Divulgação/Netflix
Divulgação/Netflix
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Os slashers, filmes em que psicopatas como Michael Myers, Jason ou Chucky ficam matando diversas pessoas ao longo da trama, têm como atração e entretenimento justamente as mortes, cada vez mais gráficas ao longo dos anos. Com Premonição, vimos a mistura de elementos do slasher com os de filmes sobrenaturais, o que nos dá uma estrutura de mortes digna do gênero, mas sem um assassino que possa ser combatido. Todos os Meus Amigos Estão Mortos vem nessa esteira da remodelação e/ou absorção dos slashers, mas propõe uma mudança com relação a Premonição: sai o elemento sobrenatural e entra o infeliz acaso.

Assim, Todos os Meus Amigos Estão Mortos cria uma belíssima sátira aos filmes estadunidenses que trazem os estereótipos de sempre dos adolescentes e jovens adultos em festas que fogem do controle. Polonês, o filme parece recusar a imposição desses comportamentos destrutivos e reconhece as atitudes estúpidas não como um comportamento aceitável da idade, mas como a única causa de todos os problemas.

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Atenção! A partir daqui, a crítica pode conter spoilers.

Vítimas?

Se hoje estamos vendo um terrir adolescente polonês, certamente isso é graças às possibilidades de plataformas como a Netflix, o que é algo muito recente. Antes disso, tudo o que chegava a nós eram produções estadunidenses, que ajudaram a moldar o comportamento de gerações. Postos lado a lado, é possível ver uma tremenda evolução nos personagens quando assistimos, hoje, filmes como Halloween: A Noite do Terror e A Hora do Pesadelo, que sedimentam o slasher;Pânico e Premonição, que reverenciam o gênero o deixando mais sombrio; e os recentes A Babá: Rainha da Morte e Todos os Meus Amigos Estão Mortos, que também o reverenciam, mas usando a comédia para ironizar o que havia de prejudicial nos filmes raiz.

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O cinema adolescente estadunidense, outra grande influência de Todos os Meus Amigos Estão Mortos, também passa por um processo semelhante. Os Embalos de Sábado à Noite e Gatinhas e Gatões marcaram época e hoje chocam por expor a cultura do estupro. Na passagem dos anos 1990 para os anos 2000, 10 Coisas que Eu Odeio em Você e American Pie — A Primeira Vez é Inesquecível começam a mostrar mudanças muito interessantes. Enquanto o primeiro oferece uma comédia romântica com uma protagonista profundamente traumatizada pelo estereotipado babaca da escola, o segundo demonstra como o conservadorismo é um dos elementos responsáveis pela estupidez dos adolescentes, mas os colocando também como responsáveis pelas próprias atitudes, afinal, são seres pensantes.

Esse olhar sobre o passado nos ajuda a compreender como Todos os Meus Amigos Estão Mortos usa a colonização cultural do cinema dos Estados Unidos para criar um filme que parece apenas um besteirol slasher tarantinesco, mas é um adorável entretenimento com funções pedagógicas dignas de obras adolescentes aclamadas, como Sex Education. O mais novo filme da Netflix, no entanto, não é vanguarda e vem na linha de outros que colocam os adolescentes como protagonistas da própria desgraça. Nesse sentido, o não tão bom Projeto X - Uma Festa Fora de Controle pode ganhar novas camadas, ainda que seja um tremendo elogio à estupidez que Todos os Meus Amigos Estão Mortos ridiculariza.

A importância de um slasher que coloca a estupidez adolescente como causa das mortes remove o elemento que os isenta da responsabilidade e a mensagem de amadurecimento se torna muito mais incisiva: pessoas morreram por culpa de alguém e não em decorrência de algum elemento que transcenda o normal. Pânico faz isso ao colocar os adolescentes do grupo central de protagonistas como assassinos e alguns filmes menos populares, como Spring Breakers: Garotas Perigosas (que por sua vez também herda a lição do fortíssimo Kids, de 1995), também colocam o peso da responsabilidade nos ombros dos adolescentes e jovens adultos.

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Sem o gosto amargo dessas obras mais dramáticas, Todos os Meus Amigos Estão Mortos aproveita a leveza da comédia para construir um verdadeiro epic fail.

Schadenfreude

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Quem nunca se divertiu assistindo a um vídeo fail (a versão YouTube das Videocassetadas) que atire a primeira pedra. A língua alemã tem uma palavra específica para esse prazer que sentimos quando alguém sofre: Schadenfreude. Esse sentimento tem sido bastante caro à psicologia, que ainda não conseguiu explicar muito bem por que a desgraça alheia pode ser a nossa diversão. Algumas correntes, no entanto, nos ajudam a entender em que medida Todos os Meus Amigos Estão Mortos funciona tão bem pedagogicamente, como Sex Education.

Ele tem personagens bastante variados, como merece um bom filme sobre festas que saem do controle. A quantidade de histórias acontecendo simultaneamente impede que tenhamos um conhecimento aprofundado dos personagens, o que facilita bastante para a comédia, já que, ainda que o choque possa acontecer, é pouco provável que fiquemos tristes com a morte de alguém. O quanto podemos desenvolver de empatia é bastante controlado pelo roteiro e pela direção, que nos conduzem facilmente de um personagem ao outro, criando conexões tão improváveis e acidamente caricatas que o humor provocado ajuda a encobrir o peso das sequências macabras.

Logo de cara, com os créditos em enormes letras serifadas amarelas, Todos os Meus Amigos Estão Mortos demonstra que os filmes de Quentin Tarantino são fontes de inspiração. Longe de soar como cópia, o que o diretor Jan Belcl faz é absorver o mestre como gênero e não como ideal, criando o próprio pastiche do pastiche. Tarantino, que dá o próprio toque a obras de outros diretores, tornou sua mistura única e original em um gênero em si, criando, muito provavelmente sem intenção, um verdadeiro manual de como fazer imagens violentas muito gráficas e, o melhor, de como demonstrar quais violências podem ser apreciadas e quais devem ser levadas mais a sério.

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Todos os Meus Amigos Estão Mortos me parece longe de conquistar o status de seminal como os demais títulos que citei, mas tem ares de impecável dentro do que propõe. Vale levar em conta que, para nós brasileiros, o entendimento da estrutura social dos personagens da festa chegam mediados pelos estereótipos reproduzidos ao longo de décadas no cinema estadunidense, um dos mais (se não o mais) consumido pela maioria nós. Nos escapa, pela falta de um contato maior, a identificação do que não soa como universal pelas referências cinematográficas, mas que dizem respeito especificamente aos adolescentes e jovens adultos da Polônia de hoje, o que deve trazer outras muitas camadas para o filme.

Para nós, que também demonstramos um enorme apreço pelas culturas das festas do copinho vermelho, as metáforas também funcionam por essa tradução fornecida — a qualquer custo — pelo cinema do Tio Sam e, pelo apreço que desenvolvemos pelos slashers, pelas comédias adolescentes e pelos filmes de Tarantino. Essa mistura é a estratégia usada para nos ajudar a perceber o preço cômico de atitudes estúpidas como possessividade em relacionamentos, misturar sexo e arma, abuso de drogas e álcool, abuso psicológico e toda sorte de coisas que vemos ao longo do filme.

Assunto sério

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O que é piada em muitos filmes teen, ganha proporções de crítica social ao nível de clássicos instantâneos como Parasita e Coringa. A figura do entregador de pizza, que é atendido por festeiros chapados, bêbados ou simplesmente mal-intencionados, e acaba ficando sem o pagamento por um pedido enorme se torna um efeito colateral pesadíssimo em Todos os Meus Amigos Estão Mortos. A situação desse personagem já é muito ruim quando o vemos passar muito tempo no frio de uma noite nevada, enquanto tenta ajudar sua mãe e enfrenta a pressão psicológica de um patrão abusivo.

Tudo fica ainda pior quando, motivado pela necessidade de conseguir o dinheiro para não perder o emprego (demonstrando seu desespero nesse sentido), o entregador precisa passar por situações que vão se somando, como o trauma de ter de roubar uma pessoa morta e o medo de ser incriminado pelo acaso. Ele finalmente desaba no banheiro, onde, sozinho, descobre que tudo foi em vão quando o dinheiro, molhado, se dissolve e o patrão, completamente sem escrúpulos, diz o que ele deveria fazer, momento em que vemos o personagem atingir seu limite, quebrando o rádio comunicador.

Essa é, provavelmente, a morte que será mais sentida pelos espectadores, isso porque este é o personagem mais complexo de todos, mesmo sendo bastante secundário na trama central da festa. A cômica sequência do início, quando o detetive dá descarga no papel higiênico que seria uma “evidência”, pode ser lida com um tom mais dramático ao final do filme: a simples e outrora engraçada figura do entregador que não é pago de repente se torna a muito mais realista ideia de uma vida que está sendo levada descarga abaixo, tendo sua genialidade (quase) apagada pelas atitudes estúpidas de pessoas que cruzam o seu caminho.

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Há um aprendizado divertido quando dois adolescentes estão transando e acidentalmente matam uma terceira pessoa. É como se o filme, em um movimento semelhante ao que faz o brasileiro Nelson Rodrigues, apelasse para a vergonha de protagonizar uma cena bizarra dessas como meio de criar uma catarse capaz de evitar que atitudes como aquela acontecessem na realidade. Por outro lado, Todos os Meus Amigos Estão Mortos indica o próprio limite do humor e se recusa a ridicularizar o entregador, corte muito bem estabelecido pelo diretor.

Final

A ânsia de dar início a uma franquia de sucesso, como renderam alguns dos principais slashers, tornou o “final em aberto” uma das características mais aguardadas do final de alguns filmes de terror. Em Todos os Meus Amigos Estão Mortos, o final, também em tom de referência, parece demonstrar a passagem do bastão que acontece entre uma geração e outra de movimentos artísticos, o que encontra eco inclusive na fala do detetive mais experiente, quando ele diz para o novato ser necessário livrar-se das roupas velhas para ter roupas novas (ideia melhor traduzida pela dublagem, que indica a necessidade urgente de se livrar das roupas velhas, ou seja, os antigos costumes). A diferença de idade dos detetives amplia essa discussão sobre a juventude e uma certa estupidez que parece ser ligada a uma questão etária, mas que, na verdade, é estrutural.

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A sequência final, introduzida pela versão do The Animals da música The House of the Rising Sun, também oferece diversas significações e proponho, aqui, uma delas. A escolha dessa música parece ser muito simbólica para o filme, porque há diversos indicativos nas especulações sobre o significado da letra que encontram consonância em Todos os Meus Amigos Estão Mortos. Há relatos de que o vocalista da banda, Eric Burdon, teria dito, durante uma visita a uma possível locação de House of the Rising Sun, que a casa conversava com ele, o que a casa destruída certamente faz com os detetives.

Além disso, a música inicia justamente quando o detetive mais jovem, após a saída do seu parceiro, olha para trás e a cinefotografia muda, mostrando um ambiente iluminado e com os falecidos, enfim, vestindo branco. É somente na sua versão pós-morte que os personagens vestem branco, cor tida em muitas culturas como a mais adequada para virar o ano (e quase esquecemos que o filme todo se passa durante uma festa de Réveillon). É possível fazer outras muitas relações entre o filme e a música, mas isso renderia todo um outro texto que não cabe aqui.

Todos os Meus Amigos Estão Mortos termina com "gostinho de quero mais" e acaba inserindo a casa como elemento sobrenatural para futuros filmes (caso venham a existir). Isso acontece não apenas pelas inserção de The House of the Rising Sun, mas também pelo quadro manchado de sangue que fecha o filme, colocando os supostos espíritos em um eterno ciclo de reprodução das suas atitudes, um eterno retorno macabro e maleável, e uma referência deliciosa a O Iluminado.

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Todos os Meus Amigos Estão Mortos está no catálogo da Netflix.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Canaltech.