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Crítica | The Quarry não subestima o espectador e convida à reflexão

Por| 15 de Maio de 2020 às 20h00

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Lionsgate
Lionsgate

Alguns filmes são histórias completas, com início meio e fim, tudo ligado por um intenso desenvolvimento de personagens; outros são apenas recortes, como se pudéssemos parar e assistir a duas horas da vida de pessoas sobre as quais nada sabemos. The Quarry e todos os seus personagens se encaixam na segunda categoria, o que torna o trabalho de Scott Teems realmente notável ao conseguir capturar a atenção e nos fazer criar empatia por personagens que são quase que completamente estranhos para o espectador.

Também não há grandes julgamentos: preconceitos são proferidos sem consequências, comentários sobre a discriminação com os latinos não encontram reverberação alguma, segredos parecem pairar sobre todos. Um conjunto de características que poderiam enfraquecer o filme, mas contribuem para criar tensão entre todos os personagens, mesmo entre aqueles que pareciam viver tranquilamente antes de chegarmos à cidade através do personagem de Shea Whigham.

Atenção! A partir daqui, a crítica pode conter spoilers.

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Diagnósticos

Embora The Quarry não pareça querer alçar grandes questionamentos sociais, o roteiro escrito por Scott Teems e Andrew Brotzman levanta interrogações sobre a justiça e chega a se opor à liderança estadunidense através da empatia e indignação do espectador. Ainda que não conheçamos o passado dos personagens, as pequenas pistas que surgem são suficientes para torná-los complexos: o verdadeiro padre se assume como um pecador; o assassino parece ser alguém que perdeu o controle diante de uma traição e, na busca pela própria paz, comete outros crimes enquanto sua aproximação com a religião faz pesar ainda mais a culpa; o chefe de polícia transita entre suas certezas e a possibilidade de ter um caso importante em mãos; e a dupla de irmãos deixa claro que os crimes são cometidos como uma via de sobrevivência.

São inúmeros os documentários que relatam como crimes que acontecem em pequenas cidades dos EUA tendem a não serem resolvidos: não é apenas uma estratégia narrativa o final em aberto. São grandes os números de casos em que uma polícia despreparada e impregnada de preconceitos utiliza alvos mais fáceis como bodes expiatórios. Pouco preparados, esses policiais também têm um histórico de maus interrogatórios, nos quais eles entregam informações úteis de graça para criminosos que se aproveitam disso. E é justamente isso o que acontece em um dos momentos cruciais de The Quarry: durante o julgamento, quando o homem que se passa por padre esquece o nome que havia assumido, é o próprio policial (Michael Shannon) que o salva, diante de um juiz, ao perguntar não somente qual era o nome dele, entregando a resposta ao dizer “Você é David Martín?”, permitindo que o criminoso se recuperasse e inventasse uma desculpa para se salvar.

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Não é a toa também que o filme é ambientado no sul dos EUA, região do país com um desastroso histórico de preconceito que é intensificado pelo número de imigrantes mexicanos, representados sobretudo na figura dos dois irmãos, que são justamente as figuras perseguidas e injustiçadas. É possível, inclusive, que a violência e a prisão sofridas por Poco (Alvaro Martinez), uma criança, sejam reflexo dos acontecimentos reais recentes, quando crianças imigrantes foram presas e separadas de suas famílias.

Naturalização

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É impressionante, no entanto, como o filme transmite uma tensão calma. The Quarry não é um filme lento, mas tem um ritmo tranquilo, demonstrando que os fatos simplesmente se sucedem uns aos outros e, mesmo intrigando a comunidade policial local, não há urgência em resolver o problema: mesmo a defesa é prejudicada pelo tempo, com Valentin (Bobby Soto) encarcerado durante dias à espera de um advogado da defensoria pública que tenta, aparentemente de má vontade, dar conta de uma região inteira sozinho.

A sensação transmitida é de completa injustiça. O padre David Martín sequer tem sua identidade descoberta e é enterrado como apenas mais um corpo sem história. Valentin precisa lutar pela própria vida diante de um sistema que, acredita ele (provavelmente de forma correta), já tem suas preferências étnicas. Poco é uma criança privada de uma infância adequada e submetida primeiramente a uma vida criminosa e, por fim, a uma fuga a pé para um futuro completamente desconhecido e, apesar da imagem idílica que nos despede dos personagens, nada garante que o futuro deles será melhor.

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Religião

Scott Teems chama a atenção pelo modo como consegue ser parcial, sendo aparentemente imparcial. O filme todo é transpassado por conceitos religiosos, desde os discursos do padre assassinado ao pedido de perdão do assassino antes dos seus momentos finais (?) no barco, o que inclui ainda um machucado na mão que se assemelha a uma das chagas de Cristo.

Shea Whigham, após interpretar muitos vilões caricatos em sua carreira, tem um dos seus melhores trabalhos em The Quarry. Com uma magreza que agrega fraqueza ao personagem, é notável como Whigham transita entre o ódio brutal e a dor do arrependimento, agregando complexidade ao personagem mais misterioso da trama. Sua relação com as passagens da Bíblia mostram um lado menos terrível de Deus e mais próximo à misericórdia do cristianismo, que é justamente o que aproxima os moradores locais e o coloca em posição de merecedor do perdão.

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Em contrapartida, não é o perdão divino que ele busca, mas sim o humano (como demonstram também outros personagens), e são justamente os momentos em que ele busca a redenção através de Valentim que seu lado obscuro é revelado, impedindo que o espectador tenha compaixão pelo vilão, afinal, se a palavra de Deus o tivesse tocado de fato, a confissão e libertação de um inocente seria a consequência imediata. O personagem de Whigham nasce como um criminoso qualquer, se desenvolve como alguém passível de compreensão, mas se revela como apenas mais um hipócrita egocêntrico.

Ao deixar as decisões nas mãos dos espectadores, Scott Teems não só endossa a formação de um espectador consciente, como respeita a nossa inteligência e conta com o nosso senso crítico. O modo como ele lida com a tensão, com calma e muitos planos-detalhe, mostra que Teems não é um diretor que está com pressa em mostrar virtuose: a técnica serve à contação de histórias, não o contrário. Não é demais supor que ele tem muito mais a entregar nos próximos filmes.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Canaltech