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Crítica | Senna mostra a realidade do homem símbolo de uma geração sofrida

Por| 01 de Julho de 2020 às 13h03

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Universal Studios
Universal Studios

Quando se fala de gerações, geralmente fica estabelecido o período em que se está em desenvolvimento. Estar crescendo e amadurecendo durante um episódio marcante atinge e influencia muito mais do que passar por esse mesmo momento enquanto adulto com a mentalidade formada. Nesse sentido, algumas gerações são assinadas por guerras, acontecimentos históricos, pandemias, revoluções, ida ao espaço, chegada na Lua… Outras, porém – e talvez eu possa arriscar que são mais raras –, são marcadas por um ser humano; alguém que, provavelmente, simboliza algo muito maior e sintetiza tudo naquilo que faz. Ayrton Senna é a marca de uma geração brasileira que ansiava por um herói, por alguém que desse orgulho ao país em larga escala.

1994, por essa perspectiva e no coletivo, pode ser um ano mais lembrado pela fatídica curva Tamburello do Grande Prêmio de San Marino do que pelo lançamento do Real (moeda que até hoje permanece entre nós), do tetracampeonato mundial da Seleção masculina de futebol, da estreia de Xuxa Park na Rede Globo e de Cavaleiros do Zodíaco na Rede Manchete, da absolvição de Fernando Collor de Mello e das mortes de Mussum e Tom Jobim. Isso porque aquela curva em Ímola, que Senna ficou impossibilitado de fazer, não causou somente a morte de um homem, mas sepultou uma alegria, uma espécie de força para um povo sofrido. A alma brasileira dos finais de semana de Fórmula 1 evaporava em um estalar de dedos, a mais de 300 quilômetros por hora.

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A vida como paixão

O documentário Senna, do inglês Asif Kapadia (que viria a realizar Amy em 2015) e agora disponível na Netflix, parece apostar em uma consciência mais “pé no chão”, humanizando o brasileiro e cedendo espaço para que ele possa ser visto como um homem – um ser humano – e não uma espécie de deus intocado. Separando Senna da idolatria, o diretor constrói um relato instigante e claramente de muita pesquisa e paixão. Mas não é uma separação total: cada sequência, por mais que revele tanto as virtudes quanto os defeitos do maior piloto da história (para mim e para a maioria) consegue, pouco a pouco, justificar o status de ídolo alcançado pelo automobilista.

Fica claro, a partir da visão de Kapadia, que não se tratava de uma idolatria sobrenatural, mas de um símbolo complexo que podia representar qualquer um. Porque não eram suas vitórias, seus títulos e sua competência nas pistas que significavam tanto; era a forma com a qual ele chegava a essas vitórias e a esses títulos e como – e com quais meios – ele desenvolvia a sua competência.

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Isso tudo é tão explícito no filme que, vez ou outra, pode parecer que Kapadia pesou a mão ao enxugar o drama a favor de um trabalho mais sóbrio. Com a montagem de Chris King (do citado Amy) e Gregers Sall (de Shadows of Liberty) unindo áudio de depoimentos com imagens de arquivo, Senna pode, inclusive, ter um tom extremamente jornalístico. Mas é justamente esse estudo de personagem que faz do filme tão relevante e eficiente; é a visão de alguém que provavelmente viu Ayrton ingressar na Fórmula 1, vencer suas primeiras corridas e crescer na categoria; é o olhar de um diretor que já era adulto formado quando da morte na Itália e que, por isso, tem uma visão consistente sobre a vida e a trata com claro respeito e admiração.

A morte como símbolo

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É tudo tão eficiente em Senna que até mesmo os minutos finais, que trazem algum melodrama e se desvencilham da unidade firme anterior, são bonitos e prestam uma homenagem válida e sincera. Essa quebra, aliás, talvez seja condizente justamente com o que existe de mais íntimo para Kapadia e com a sua decisão mais humilde: se ele pôde acompanhar a vida e o crescimento de Senna dentro do automobilismo, a morte – quando o diretor já estava com seus 22 anos de idade – teria uma paixão muito mais racional do que impulsiva.

Dessa maneira, decidindo pela entrega ao olhar mais alheio, o diretor demonstra consciência social, histórica e principalmente empática. Porque fomos nós, brasileiros de uma geração que precisava – por vários motivos – ser feliz no início dos anos 1990, que sentimos aquele 1º de maio de 1994.

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Não que não encontrássemos outras felicidades, mas uma falha humana – que não foi de Ayrton – acabou com as nossas alegrias dos finais de semana de Fórmula 1. No final das contas, somente um sobre-humano, um deus ou um homem símbolo da força de um povo sofrido conseguiria ser eternizado por meio de um esporte que pouco condiz com a nossa realidade.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Canaltech