Publicidade
Economize: canal oficial do CT Ofertas no WhatsApp Entrar

Crítica | Remédio Amargo traz a masculinidade frágil em suspense passatempo

Por| 23 de Setembro de 2020 às 19h15

Link copiado!

Divulgação/Netflix
Divulgação/Netflix
Tudo sobre Netflix

Pode ser sempre complicado quando um filme procura trazer de forma tão direta um paralelo com a realidade. Remédio Amargo, nesse sentido, não se apoia em símbolos ou em construções menos óbvias para comentar sobre relações abusivas. Desde o princípio, existe uma força destruidora na personagem de Mario Casas (Ángel). E a verdade é que o filme em si, já na sua primeira cena, vem carregado de destruição.

Há, portanto, um ponto-âncora que parece guiar tudo e este, sim, é simbólico e permanece em paralelo ao óbvio expositivo do casal Ángel e Vane (Déborah François). O problema (caso seja levado como tal) é que a subjetividade potencializada pela direção de Carles Torras (de Callback — filme de 2016) é perigosamente dúbia e isso pode acabar moldando negativamente a experiência do espectador.

Continua após a publicidade

Atenção! Esta crítica contém spoilers sobre o filme!

As duas camadas

Ángel é um personagem inicialmente complexo, um paramédico que é apresentado salvando, justamente, uma personagem do sexo oposto e impedido (por um acidente) de salvar um homem. Ao mesmo tempo, pequenos furtos que ele comete nas cenas das ocorrências criam uma aura de mistério em torno de si. Por essa perspectiva, o começo de Remédio Amargo é carregado de informações subjetivas, como, por exemplo, os gritos um tanto quanto perturbadores do carro acidentado que partem somente do banco do carona, da mulher.

Continua após a publicidade

O primeiro ato, portanto, é carregado de informações visuais sobre o protagonista. Se tudo pode fomentar a desconfiança do público, Torras é cuidadoso em fazer com que toda suspeita seja quase minimalista. Casas, aliás, é de muitas sutilezas em sua interpretação, tanto no que diz respeito às expressões faciais quanto em sua movimentação ora refinada e até delicada quando em seu ofício ora animalesca quando no trato com Vane — inclusive, sexualmente falando, aparentemente preocupado apenas com seu prazer.

O desequilíbrio na exposição de Ángel e Vane abre espaço até mesmo para a interpretação do filme como um estudo de personagem, no qual ela (Vane) está ali para alimentar o que se pretende trabalhar com ele. É essa forma, porém, que pode fazer nascer a dubiedade e acabar por, após o primeiro ato, transformar Remédio Amargo em uma produção alienada por si mesma, como se quisesse, a todo custo, ser socialmente relevante.

Isso porque, mesmo com todos os indícios da existência de um relacionamento abusivo, o foco para uma virada mais seca no comportamento de Ángel é o acidente e a sua, então, condição de cadeirante. Nesse ponto, a história pode começar a deixar um gosto azedo. Acontece que, em sua primeira camada, o sujeito paraplégico começa a se tornar um vilão unidimensional. Esse ponto óbvio pode ser balanceado por uma metáfora mais profunda, mas que permanece em sua camada metafórica sem jamais alcançar uma relação de igualdade com as obviedades: aquele homem, claramente apoiado em sua masculinidade, acaba por ver ela (essa masculinidade) ser desfeita, destruída.

Continua após a publicidade

O tratamento dado pela direção sobre essa ferida social é desfocado. Por mais que tudo comece a desmoronar na vida de Ángel — seu trabalho; sua fertilidade; sua possibilidade de andar; seu prazer sexual, quando ele mesmo afirma que não está sentindo o sexo; e sua moral de provedor da família —, Torras direcionada Remédio Amargo para um suspense mais raso, deixando o tom simbólico quase sempre para interpretações que podem parecer forçadas. É o caso de uma breve cena em um ônibus que pode até parecer desnecessária, quando uma sacola com baguetes atinge o rosto do personagem. A pensar que dificilmente uma cena é levada ao corte final sem que tenha significado para o todo, talvez seja possível levar em conta exatamente a masculinidade frágil dele e, assim, a passagem seja até sarcástica ao mostrar o símbolo da vida (o pão) em sua forma mais fálica atingindo seu rosto.

Devastador

Continua após a publicidade

Por outro lado, os ingredientes para o suspense estão muito presentes e é instigante como o gênero é tratado com propriedade. Nasce, daí, o vilão que, ironicamente batizado de Ángel (anjo em tradução livre), move o filme, passo a passo, para um novo acontecimento. E, por novo, entenda-se que se trata de algo interno, da história em si, porque o desenho de produção de Sebastián Vogler (de Os Indesejados da Europa) constrói uma atmosfera quase de antiguidade, como se (e que de fato é) uma personalidade abusiva como a de Ángel existisse desde sempre. Móveis, aparelho de som com disco de vinil, fitas K7, abajures noventistas, o próprio edifício é avesso ao contemporâneo...

As atitudes do protagonista, no final das contas, são típicas de um thriller já clichê, mas a contemporaneidade da crítica social segura o filme de maneira firme até o fim. Há, ainda, uma falta de realidade pontual para uma produção que parece buscar sempre o atestado de veracidade: a polícia quase nula, praticamente passiva, em meio a sequestro e assassinatos. Relevando-se e aceitando a entrada e saída de cena irrelevante de uma investigação policial, Remédio Amargo pode ser bem potente dentro de sua proposta mais evidente: a de entreter.

Continua após a publicidade

O final, pensando dessa forma, é, ao mesmo tempo, corajoso e coerente. A vingança por meio de uma provável tortura na inversão dos papéis de domínio tem mais poder momentâneo do que de reflexão. Talvez isso seja muito coeso para um filme que, por mais que seja carregado de considerações sobre o mundo, prefira seguir por um caminho mais fácil. E, por mais fácil, entenda-se no âmbito geral, no tratamento do próprio filme, porque, para a masculinidade de Ángel, nada poderia ser tão devastador.

Remédio Amargo está disponível no catálogo da Netflix para todos os assinantes.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Canaltech.