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Crítica | Terror de Relic é lembrança sombria sobre o ciclo da vida

Por| 21 de Julho de 2020 às 09h28

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Umbrella Entertainment
Umbrella Entertainment

Há algumas formas criativas de reinventar algo que se tornou clichê e uma delas é criar uma mescla única e autoral de elementos que se tornaram icônicos em suas produções, o que revela não só a perícia do autor, mas a consciência de que não basta conhecer a técnica, é necessário saber utilizar o conhecimento para o fim desejado. Relic é desses filmes que surgem praticamente do nada aqui no Brasil, passando despercebido por grande parte do público, mas que mereciam percorrer um caminho melhor e capaz de conduzir a obra ao reconhecimento merecido.

Dito isso, vale a pena entender também o significado da palavra “relíquia” (tradução literal do título “Relic”). “Relíquia” é um termo religioso para designar objetos ou mesmo restos mortais de personalidades sacras. A palavra deriva do latim “reliquiae” que, além de “restos”, também significa “deixar para trás ou abandonar”, o que torna o termo o título perfeito para o filme. Outro ponto que acrescenta tremendamente ao filme é o reconhecimento de que Relic é dirigido por uma mulher.

Atenção! A partir daqui, a crítica pode conter spoilers.

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Abertura

Não é fácil iniciar um filme com uma sequência que realmente cative o espectador ao ponto de, em apenas alguns minutos, fazer com que desperte o desejo de acompanhar a história até o final, custe o que custar. Relic consegue isso.

O filme já começa inserindo tensão com a trilha e com uma luz ligando e apagando, o que cria uma atmosfera de antecipação acerca do que poderá surgir na imagem na próxima vez que as luzes acenderem. Aos poucos, as luzes entram em foco e podemos ver uma sala escura iluminada pelas luzes decorativas de Natal, em um tom sombrio para o período comemorativo geralmente retratado de forma muito mais alegre. Planos-detalhe belíssimos criam a ambientação, mostrando alguns dos principais elementos da trama (a urna funerária e o vitral da porta) e nos revelam os primeiros elementos estranhos.

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A água se espalhando pela casa nos conduz à perturbadora imagem de uma mulher nua contemplando a sala com decoração natalina. Trilha, direção, fotografia e direção de arte ajudam a criar um quadro assustador, que é intensificado pela figura de uma silhueta humana que se levanta da poltrona.

Essa sequência é excelente pelo controle, por não recorrer ao exagero e por confiar na atenção do espectador, não precisando recorrer a recursos como jump scare (quando um susto é causado por algum barulho repentino). Nesse caso, o medo é tão mais intenso quanto é a sutiliza da direção.

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Matriarcado

Relic não parece ter a intensão de deixar a metáfora subentendida e explica, através dos comentários da neta Sam (Bella Heathcote), que se trata de uma história sobre o cuidado com as gerações (as mães trocam nossas fraldas e, no futuro, trocaremos as delas), já que a mitologia do filme é um mistério: não sabemos o que são os vultos, o apodrecimento da casa, porque isso acontece ou como passa de geração em geração, mas a intenção não parece ser essa. Embora estejamos acostumados com histórias de origem no terror, muitos dos melhores títulos do gênero não têm a intenção de explicar os porquês, nos mostrando apenas o acontecimento e nós, expectadores, que devemos lidar com as lacunas.

Com isso em mente, Relic consegue se dedicar à metáfora sobre o envelhecimento e revisitar imagens do cuidado materno no cinema de horror, sobretudo quando Kay (Emily Mortimer) toca Für Elise no piano e quando Edna, paralisada, urina no chão, referências a O Bebê de Rosemary e O Exorcista respectivamente. Em Relic, Natalie Erika James consegue tornar reais no universo do filme as percepções da velhice. A presença (ou a sombra) insistente de quem se foi e faz falta está personificada na silhueta que vemos pela casa e não é a toa que o mofo na lareira esteja justamente atrás das cinzas do falecido (cujo corpo enegrecido e ressecado pode também ser uma alusão ao corpo cremado).

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Há também os comentários de Edna sobre a casa parecer maior: é um sentimento comum de idosos que veem suas casas se esvaziarem da presença dos entes queridos com o tempo, dando a impressão de que o local tornou-se grande demais. Em Relic, a casa torna-se literalmente maior (e talvez isso seja uma tendência do terror, pois é bastante similar ao assombro da casa do recente You Should Have Left).

O flerte com a morte que surge a partir da solidão de alguns idosos e a realidade de um corpo que parece às vezes estar sofrendo um processo de deterioração são transformados em elementos literais de body horror, subgênero do terror cujo foco é causar agonia no espectador com a dilaceração do corpo vivo. No terror, o óbvio geralmente enfraquece a narrativa que se propõe séria, mas a genialidade de Natalie Erika James, que co-redigiu o roteiro ao lado de Christian White, é a utilização do óbvio para a criação de elementos sobrenaturais que não são óbvios.

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O elenco feminino também é um acerto. Não que a ligação entre pais e filhos seja inferior à de mães e filhas, mas há algo na maternidade, no ato de gerar a vida, que aproxima a mulher do divino e aproxima as personagens do conceito de relíquia. Por outro lado, a capacidade de gerar vida não possibilita que as mulheres sejam capazes de impedir a morte. O enfileiramento de avó, mãe e neta na cama dizem respeito a esse ciclo da vida macabro e deixa a lembrança de que precisamos de cuidados tanto no princípio quanto no fim de nossas vidas (o que parece ser outra tendência de tema, já que um dos episódios recentes do Greg News foi justamente sobre cuidado).

Relic é um terror inteligente e reverente, é a transmutação do terror psicológico em terror de fato, com referência aos clássicos não como cópia ou pastiche, mas como o reconhecimento da linguagem que é própria do gênero. Com seu primeiro longa-metragem, Relic, Natalie Erika James nos dá um cartão de visitas que nos mostra não só que se trata de uma cineasta com conhecimento, mas de uma artista que sabe usar as ferramentas que tem em mãos.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Canaltech