Crítica | Hamilton é o que de melhor um filme pode ser mesmo sem ser um filme
Por Sihan Felix | •

Hamilton não é um filme – a menos como se está acostumado. Passou, claro, a ser uma obra para o cinema a partir do momento em que foi pensada essa exposição, mas suas características e sua linguagem são de teatro. Por mais que possam existir comparações com filmes realizados em palcos (ou quase isso), como o clássico Festim Diabólico (de Alfred Hitchcock, 1948) ou como A Flauta Mágica (de Ingmar Bergman, 1975) – este que talvez seja o mais célebre dos teatros filmados –, Hamilton não é um filme.
Mas não há nada de errado ou ruim nisso. Porque Hamilton é uma Experiência Estética que ultrapassa as questões de linguagem; é uma obra por si e que, na verdade, perde quando comparada a outras. Não por ser melhor, mas por ser única. Hitchcock fez cinema de altíssimo nível em cima de um palco, Bergman fez uma ópera filmada ao seu modo, Robert Bresson e tantos têm filmes chamados de teatro filmado e Hamilton é Hamilton. É o que é: é teatro, é musical, é uma obra-prima e é a melhor experiência para o cinema em muito tempo.
Essa dualidade, dentro da estrutura da peça, é bem colocada justamente por ser inicial e ganhar complexidade dramatúrgica junto aos personagens. Os mesmos que versavam no rap, aos poucos, começam a cantar plasticamente, o que é acompanhado por uma evolução social. Por outro lado, essa transformação carrega a cultura hip hop consigo, fazendo com que, por exemplo, Aaron Burr (Leslie Odom Jr.) não somente cante de maneira mais clássica, mas carregue uma alma mais pop. A canção cantada por Burr sobre a filha Theodosia é das mais emotivas graças a interpretação de Odom Jr., mas se deve, também, à construção que sua personagem tem a partir do texto de Lin-Manuel Miranda (inspirado em livro de Ron Chernow).
Quem?
A correlação entre gêneros musicais, culturas, classes sociais e política, aliás, fundamenta Hamilton (Miranda) com uma riqueza de detalhes que beira o bom absurdo. Ele, que está presente em praticamente todo o espetáculo, é o que menos se distancia do rap quando canta. Parece que suas raízes ficam presas ao passado e é o passado que forma a sua personalidade – o que é de muito valor humano. Assim, o homem que é apresentado como aquele que não pode desperdiçar o tiro (ou a chance), que acredita na necessidade de agir, fica aprisionado em sua personalidade e reflete sobre isso com frequência.
Do outro lado, Burr é o que pensa antes de realizar. Espere para ver, seu lema na prática, entrelaça-se com Hamilton no duelo final. Burr, que cantava pela espera, acaba atirando em Hamilton, que desperdiça o tiro para o alto. A complexidade desse duelo está muito além do fato em si – que foi anunciado mais de duas horas e meia antes. É um ponto que dialoga com questões sobre oportunidades: Burr, que foi sempre deixado em segundo plano pelos superiores, contra Hamilton, que sempre teve a chance de evolução sócio-intelectual. O momento em que George Washington (Chris Jackson) pede para Burr se retirar para que ele possa conversar com Hamilton a sós é, por essa lógica, revelador.
Eliza (Phillipa Soo) – assim como as irmãs Angelica (Renée Elise Goldsberry) e Peggy (Jasmine Cephas Jones) –, por sua vez, se é um reflexo feminino da época histórica que é tratada durante a peça, igualmente é protagonista de sua própria vida. Por esse ponto de vista, ao mesmo tempo que a personagem de Goldsberry, mesmo com seu amor reprimido, não precisa de Hamilton para seguir sua vida e jamais se entrega ao melodrama, Eliza é quem dá suporte a Hamilton, nunca o contrário. Eliza é quem, após tanto, encerra tudo. Sua voz é a que precede os aplausos finais para Hamilton, ao som de quem contará a sua história?
Mesmo sem ser um filme
No final das contas, Hamilton não é um filme e não há nada de errado ou ruim nisso. A Experiência Estética que ultrapassa as questões de linguagem e forma faz desse musical uma obra por si. Entre os suspenses de palco realizados para o cinema, é provável que nenhum se compare ao Festim Diabólico; entre as óperas filmadas, é possível que nenhuma se compare ao A Flauta Mágica; e, entre os musicais da Broadway levados ao cinema, nenhum deve se comparar a Hamilton.
Todo o espetáculo, que é dirigido por Thomas Kail, na verdade, pode ser visto como mais do que teatro filmado. E é por isso, por ultrapassar a própria linguagem sem nem mesmo tentar ser mais do que é, que Hamilton acaba por ser uma obra-prima e o que de melhor um filme – mesmo sem ser um filme – pode oferecer.
*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Canaltech