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Crítica | Hamilton é o que de melhor um filme pode ser mesmo sem ser um filme

Por| 23 de Julho de 2020 às 10h33

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Hamilton não é um filme – a menos como se está acostumado. Passou, claro, a ser uma obra para o cinema a partir do momento em que foi pensada essa exposição, mas suas características e sua linguagem são de teatro. Por mais que possam existir comparações com filmes realizados em palcos (ou quase isso), como o clássico Festim Diabólico (de Alfred Hitchcock, 1948) ou como A Flauta Mágica (de Ingmar Bergman, 1975) – este que talvez seja o mais célebre dos teatros filmados –, Hamilton não é um filme.

Mas não há nada de errado ou ruim nisso. Porque Hamilton é uma Experiência Estética que ultrapassa as questões de linguagem; é uma obra por si e que, na verdade, perde quando comparada a outras. Não por ser melhor, mas por ser única. Hitchcock fez cinema de altíssimo nível em cima de um palco, Bergman fez uma ópera filmada ao seu modo, Robert Bresson e tantos têm filmes chamados de teatro filmado e Hamilton é Hamilton. É o que é: é teatro, é musical, é uma obra-prima e é a melhor experiência para o cinema em muito tempo.

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A experiência estética

A Experiência Estética, em síntese, é o encontro com determinada obra, um encontro que não consiste em perceber a beleza dela; não é ter um contato de maneira distanciada; é participar do que é visto. Não é buscar que o filme venha até si, mas entrar no universo dele. Essa interação é possível a partir do momento em que se tem internalizado que o sentir-estético é um sentir completamente aberto à arte.

Na Grécia Antiga, por exemplo, ainda sem a conceituação de Experiência Estética – e obviamente sem cinema –, Platão falava das reações emocionais causadas pelas recitações de poesia. Bem mais tarde, já do século XVII para o XVIII, o crítico de arte Roger de Piles afirmou que a pintura deve desafiar o espectador e o espectador, surpreendido, deve ir ao encontro dela, como se entrasse em uma conversa.

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Nesse sentido, são consideradas experiências estéticas aqueles momentos em que há uma participação não somente intelectual do espectador, mas emocional também. Esse tipo de experiência é, como disse o filósofo e pedagogo John Dewey, o que há de mais completo e rico na interação entre alguém e uma arte.

Cuidado! A partir daqui o texto pode conter spoilers.

Dararara tá

Hamilton tem força, por essa perspectiva, para ser uma Experiência Estética sem que necessite de muito esforço do espectador. Isso é conseguido, em parte, pela sensação de assistir a tudo in loco (por mais que sejam aproveitadas mais de uma sessão e se tenha cenas filmadas sem público), visto a não exclusão dos sons da plateia e até de algumas interações do elenco com aqueles que assistem à peça verdadeiramente ao vivo – o que reforça (ou deixa ainda mais claro) o caráter de teatro e a não-intenção de ser um filme. Mas o resultado também é conseguido por uma dinâmica de fácil assimilação e inicialmente dualista: enquanto pobres enveredam-se pelo rap, os mais favorecidos cantam de forma clássica – algo que as intervenções do Rei George (Jonathan Groff) expõem, inclusive por meio de versos que verbalmente nada dizem, mas, musicalmente, revelam que o sujeito só quer contaminar a todos com seus pensamentos perversos e vazios. E consegue: de repente, e a seu pedido, todos passam a cantar com ele o dararara tá.

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Essa dualidade, dentro da estrutura da peça, é bem colocada justamente por ser inicial e ganhar complexidade dramatúrgica junto aos personagens. Os mesmos que versavam no rap, aos poucos, começam a cantar plasticamente, o que é acompanhado por uma evolução social. Por outro lado, essa transformação carrega a cultura hip hop consigo, fazendo com que, por exemplo, Aaron Burr (Leslie Odom Jr.) não somente cante de maneira mais clássica, mas carregue uma alma mais pop. A canção cantada por Burr sobre a filha Theodosia é das mais emotivas graças a interpretação de Odom Jr., mas se deve, também, à construção que sua personagem tem a partir do texto de Lin-Manuel Miranda (inspirado em livro de Ron Chernow).

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Quem?

A correlação entre gêneros musicais, culturas, classes sociais e política, aliás, fundamenta Hamilton (Miranda) com uma riqueza de detalhes que beira o bom absurdo. Ele, que está presente em praticamente todo o espetáculo, é o que menos se distancia do rap quando canta. Parece que suas raízes ficam presas ao passado e é o passado que forma a sua personalidade – o que é de muito valor humano. Assim, o homem que é apresentado como aquele que não pode desperdiçar o tiro (ou a chance), que acredita na necessidade de agir, fica aprisionado em sua personalidade e reflete sobre isso com frequência.

Do outro lado, Burr é o que pensa antes de realizar. Espere para ver, seu lema na prática, entrelaça-se com Hamilton no duelo final. Burr, que cantava pela espera, acaba atirando em Hamilton, que desperdiça o tiro para o alto. A complexidade desse duelo está muito além do fato em si – que foi anunciado mais de duas horas e meia antes. É um ponto que dialoga com questões sobre oportunidades: Burr, que foi sempre deixado em segundo plano pelos superiores, contra Hamilton, que sempre teve a chance de evolução sócio-intelectual. O momento em que George Washington (Chris Jackson) pede para Burr se retirar para que ele possa conversar com Hamilton a sós é, por essa lógica, revelador.

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Eliza (Phillipa Soo) – assim como as irmãs Angelica (Renée Elise Goldsberry) e Peggy (Jasmine Cephas Jones) –, por sua vez, se é um reflexo feminino da época histórica que é tratada durante a peça, igualmente é protagonista de sua própria vida. Por esse ponto de vista, ao mesmo tempo que a personagem de Goldsberry, mesmo com seu amor reprimido, não precisa de Hamilton para seguir sua vida e jamais se entrega ao melodrama, Eliza é quem dá suporte a Hamilton, nunca o contrário. Eliza é quem, após tanto, encerra tudo. Sua voz é a que precede os aplausos finais para Hamilton, ao som de quem contará a sua história?

Mesmo sem ser um filme

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No final das contas, Hamilton não é um filme e não há nada de errado ou ruim nisso. A Experiência Estética que ultrapassa as questões de linguagem e forma faz desse musical uma obra por si. Entre os suspenses de palco realizados para o cinema, é provável que nenhum se compare ao Festim Diabólico; entre as óperas filmadas, é possível que nenhuma se compare ao A Flauta Mágica; e, entre os musicais da Broadway levados ao cinema, nenhum deve se comparar a Hamilton.

Todo o espetáculo, que é dirigido por Thomas Kail, na verdade, pode ser visto como mais do que teatro filmado. E é por isso, por ultrapassar a própria linguagem sem nem mesmo tentar ser mais do que é, que Hamilton acaba por ser uma obra-prima e o que de melhor um filme – mesmo sem ser um filme – pode oferecer.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Canaltech