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Crítica | Eu Vi: América Latina dá um tiro no próprio pé

Por| Editado por Jones Oliveira | 06 de Abril de 2021 às 12h33

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Todo documentário clama sua relação com a realidade, mas nem todos os documentários são capazes de mostrar a realidade. Importante ter isso em mente. Sabemos que existem documentários mais falsos que a ficção e ficções que, através de um faz-de conta, nos mostram faces da realidade que só passamos a compreender através da arte.

Eu Vi, desde a sua primeira versão, sempre deixou clara a ideia de que a série traz relatos reais, enquanto a Netflix aponta as séries como reality shows (não documentários). De fato, a série tem um pé no documentário, um pé no reality show (com as pessoas reunidas no estilo Casos de Família) e um pé no pseudodocumentário, que fica mais pseudo a casa novo problema narrativo.

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Ainda assim, Eu Vi apela tremendamente para o nosso lado pessoal: como você reagiria se essas coisas bizarras acontecem com pessoas tão próximas de você? Como lidar com a ideia de que a pessoa que você ama é ou está assombrada? O ceticismo de alguns envolvidos contribui um pouco para trazer mais dimensões para série, mas de modo geral, vale mais a pena escutar as histórias dos seus próprios amigos e familiares.

Atenção! A partir daqui, a crítica pode ter spoilers.

Boo!

Histórias de terror, quando contadas em forma de um relato pessoal, tendem a arrepiar os pelos da nuca mesmo quando sabemos se tratar de alguma lenda urbana que aconteceu com um amigo de um amigo de uma prima. Quando alguém crê em algo e sente um medo real, seu corpo demonstra isso. Apenas ver esse pavor acontecer no corpo de outra pessoa já nos permite sentir um pouco desse medo.

Esse elemento deveria ser a raiz do terror de Eu Vi, como acontece muito bem no documentário O Pesadelo - Paralisia do Sono, que infelizmente saiu do catálogo da Netflix. Na primeira temporada América Latina, Eu Vi deveria gerar ainda mais identificação para os brasileiros, mas o que acontece é um desastre potencializado pela própria estrutura do reality show.

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Familiares, amigos e testemunhas se reúnem em uma sala digna de uma mansão mal-assombrada. Ali, a vítima revela sua história, ressignificando diversos momentos e situações compartilhadas com os demais reunidos: mães, maridos, filhos, enfim, pessoas comuns justificando seus momentos difíceis com histórias terríveis. Claro que a série, em alguns momentos, nos atinge e a questão que pode nos ser mais cara não tem resposta fácil: e se isso tivesse acontecido com alguém próximo? Acreditaríamos? Como reagiríamos?

Instinto e fé

Novamente, somos seres mais transparentes do que imaginamos, sobretudo quando há uma câmera revelando um close up do seu rosto. Enquanto as histórias são contadas, os ouvintes também são constantemente mostrados para que vejamos neles algum reflexo da veracidade do que está sendo contado. O que raramente acontece. Vemos de tudo, menos aquela deliciosa vibe de história de terror sendo contada em torno de uma fogueira.

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É mais assustadora a sensação de que há realidades mais trágicas além das histórias de fantasmas, grandes épicos repletos de traumas: o terror da maternidade, o terror do trabalho como policial, o terror de viver a separação dos pais em meio ao mundo ocultista da avó e, quem sabe, um possível abuso ocultado pelo inconsciente. Certamente, as histórias de Eu Vi: América Latina são um delicioso laboratório (com um gostinho de trash) para analistas e psicólogos.

Apesar de leiga nessas áreas que estudam nossas emoções, posso recorrer às minhas experiências. Assim como eu, acredito que muitas (senão todas) outras pessoas já tiveram contato com alguma história de fantasma. Alguma pessoa próxima que contou algo, deixando nítido que só de lembrar daquilo o pânico voltava. E o pânico é visível.

Em Eu Vi, as pessoas esboçam muitas emoções, mas raramente o terror, o pavor. Desconfiança, raiva, compadecimento e tristeza são sentimentos que pairam sobre o ambiente do reality show. E isso é extremamente desconfortável, justamente porque incentiva o ceticismo (algo que o gênero terror tenta afastar a todo custo, nem que seja nos limites da exibição).

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É bom?

Raramente é possível dizer que um filme ou uma série é definitivamente bom(a) ou ruim. Acredito que sempre há algo de bom e Eu Vi tem diversos pontos positivos (algumas sacadas interessantes de montagem, algumas atuações e ideias pontuais de direção das dramatizações), mas isso é praticamente soterrado pelos problemas, pela artificialidade da série, que nos arranca constantemente do terror.

É difícil acreditar que o discurso é um relato sincero, porque parece um texto decorado. É difícil acreditar que é uma história de terror e não uma versão invertida de Casos de Família, porque o terror não transparece em nada. Somado a isso, a dramatização, claro. Assim como o defeito é uma qualidade do trash, as más atuações são a cereja do bolo desses documentários, transformando o terror em um terrir melodramático, efeito que pode ser potencializado pela dublagem brasileira (adoraria ver pelo menos um episódio de Eu Vi com dublagem de Jefferson Schroeder).

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As histórias são reais mesmo? Não temos como saber. Não é por causa dos relatos que Eu Vi: América Latina é ruim, mas é porque a série se autossabota. Para além de as pessoas não parecem confortáveis o suficiente para deixarem fluir os sentimentos, as dramatizações são péssimas por sabotarem os relatos — ou será que elas estão nos deixando rastros secretos para que saibamos que é tudo mentira?

Há momentos em que, por exemplo, uma das vítimas (o policial) relata caminhar pelo apartamento em busca do espírito daquela mulher que lhe assombrava e lhe protegia. Ele fala de uma presença, mas que não a viu, enquanto a dramatização a mostra na sala, em um reflexo do espelho. Se a dramatização nos mostra algo que não foi dito, quantas outras vezes isso aconteceu de uma forma mais sutil? Aquele monte de velas acesas na casa da avó cigana: será que era assim mesmo ou será que a direção de arte está tentando forçar o terror da forma mais clichê possível?

Se a série nos faz duvidar dela, ficamos sem dados suficientes para refletir sobre os relatos das pessoas. Assim, Eu Vi: América Latina se mostra mais literal do que poderíamos imaginar, uma sinceridade que estava o tempo todo na nossa cara: o título. Dito em primeira pessoa, é só uma série que vi. Se há algum potencial, é apenas como nova (e não tão divertida) série Goosebumps.

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Eu Vi: América Latina está disponível no catálogo da Netflix.

*Esta crítica não reflete, necessariamente, a opinião do Canaltech.