Crítica Encanto | Não existe família perfeita
Por Beatriz Vaccari • Editado por Jones Oliveira |
Quando Encanto foi anunciado pela Disney, as informações sobre enredo ainda eram bem escassas e a trama parecia seguir a tradicional (e eficaz) fórmula de um filme animado dos estúdios, com muita cor, personagens que atraem o público e muita, muita magia. No entanto, o novo filme de Byron Howard (de Enrolados e Bolt: Supercão) e Jared Bush (de Zootopia e Moana) arranha muito além da superfície e entrega, talvez, a mensagem mais madura vista entre todos os filmes da companhia até agora.
Dinâmicas familiares são complicadas, tanto na ficção quanto na vida real. É muito comum ver em filmes infantis a mensagem sobre como a família é importante e como devemos cuidar dos nossos, independente de seus defeitos. Encanto não foge disso e ainda traz a mesma mensagem, porém diferente de outras animações, o longa se aproxima muito mais da realidade e da imperfeição dos parentes, que os fazem seres humanos.
Howard e Bush chegam bastante perto da realidade que muitas crianças e adolescentes sofrem com Encanto. Ao utilizar o "milagre" da família Madrigal como metáfora para insinuar que a protagonista Mirabel (Stephanie Beatriz) não possui nada de especial, ambos cineastas propõem uma reflexão quase psicanalítica sobre atitudes abusivas, dinâmicas familiares e parentes narcisistas num filme que apenas possui a aparência de ser mais uma aventura mágica e infantil.
Encanto pode ressoar de forma muito dura se bater em portas específicas. Os Madrigal são uma família aparentemente unida, feliz e tudo o que o ser humano pode definir como perfeita — pelo menos é o que sai bem na foto, literalmente. Logo nos primeiros minutos essa mensagem é entregue ao espectador por meio de uma canção em que Mirabel enaltece todos os seus parentes (inclusive a sua irmã, que a odeia) e ignora o fato de que entre todos os integrantes da mesma casa, ela é a única que não foi abençoada com um dom mágico.
Uma reflexão sobre pertencimento
Aqui nós temos a oportunidade de conhecer todos os integrantes da casa Madrigal, um lugar repleto de cor, flores e alegria. Comandada por Abuela (María Cecilia Botero) - que segundo a psicanálise pode muito bem ser definida como uma mãe e avó narcisista -, a família vive em sintonia, promovendo cerimônias mágicas de sucesso e jantares divertidos. Mirabel, no entanto, não faz parte daquilo.
A protagonista vai muito além do que uma simples filha excluída. Ao não ter um dom mágico como o de qualquer uma de suas irmãs, tios ou até mesmo sua mãe, Mirabel é colocada num lugar em que praticamente não existe dentro da família Madrigal: retratado dolorosamente com uma foto de família em que ela fica atrás da câmera.
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Encanto, talvez até sem querer, acaba sendo um filme sobre pertencimento e falsas ideias. A família Madrigal não possui nada de perfeito, assim como nenhuma outra por aí; vivendo de tabus e regras estritamente criadas e gerenciadas por Abuela, os integrantes da casa mágica apenas cumprem a rotina que lhes é concedida diariamente. De uma certa forma, o filme pode ressoar de forma muito forte e até mesmo triste dependendo do quão perto pode chegar para algumas pessoas.
Esse comportamento de varrer (literalmente) os problemas para baixo do tapete é mais uma vez visto na presença de Tio Bruno (John Leguizamo), cujo dom é premonitório. Ao conseguir enxergar eventos futuros, o irmão da mãe de Maribel foi capaz de ver ocasiões boas e ruins que eventualmente aconteceriam a seus parentes, mas por ser um portador de más notícias, acabou sendo afastado da família e tornando-se, literalmente, um tabu.
A criação de tabus numa família
Sua existência é tão ignorada que seus parentes evitam até mesmo proferir seu nome, apesar de Bruno ganhar uma música própria: "Não falamos sobre Bruno." O ato de apagar um integrante da mesma linha sanguínea e recalcar sua existência acaba tornando-se um peso, e isso é nítido com o passar dos anos em diversas ocasiões. Encanto, contudo, não hesita em colocar o dedo na ferida e mostrar que em ambos os lados tal escolha pode ser dolorosa e não trazer benefício nenhum.
Não há como colher bons frutos da falta de diálogo e do recalque de situações que precisam de entendimento. Encanto, visto por essa forma, propõe a mais madura das reflexões de um filme da Disney até agora, trazendo uma ambiguidade de faixas etárias muito forte: ao mesmo tempo em que entretém os mais novos com suas músicas, efeitos visuais e personagens simpáticos, o público mais adulto é quem vai sair mexido das salas de cinema.
Uma lição sobre imperfeições e pertencimento, Encanto mostra que não existe pedestal alto o suficiente para impedir seres humanos de errarem e terem defeitos, independente do milagre ou dom mágico.
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