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Crítica | Crime e Desejo acende o pavio e não explode

Por| 26 de Fevereiro de 2021 às 14h40

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Divulgação/Netflix
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Há filmes que se escondem atrás de sua história, daquilo que o roteiro pode trazer à tona. Nesses casos, a direção funciona como ilustração, somente como um meio de passar a escrita para o formato audiovisual. Crime e Desejo sofre com isso. Existe uma idealização do diretor Phillip Noyce (de O Colecionador de Ossos — filme de 1999) que não consegue transgredir o que é contado.

Além disso, é justamente a elaboração de Noyce que pode diminuir a proposta textual de Chris Gerolmo (de Mississippi em Chamas) — que é baseada em um livro de Joe Sharkey (e este em fatos). Isso porque a riqueza dos acontecimentos permanece; a desconstrução do protagonista, Mark (Jack Juston), está intacta. O problema é que o diretor parece pesar a mão em algumas escolhas e acaba afogando a intensidade dos personagens.

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Atenção! Esta crítica pode conter spoilers sobre o filme!

Sem corpo

Em Crime e Desejo, tudo acontece circulando ao redor de Susan Smith (Emilia Clarke). Como ela indica nas primeiras cenas do filme, tudo é um flashback. Ela narra de uma posição impossível de alterar: a própria morte. Assim como na obra-prima (ou quase isso) Beleza Americana (de Sam Mendes, 1999), não é o fim previamente anunciado que importa, mas o caminho até ele.

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Esse caminho, no caso, é Mark. Enquanto Susan ganha complexidade dentro do seu espectro de mulher, viciada e sem recursos financeiros, ele começa a se desconstruir. A imagem do homem de família certinho, proeminente, talentoso e profissional é, pouco a pouco, soterrada pela riqueza das circunstâncias. Pode ser bem pesado, nesse sentido, como o desfecho é uma triste contemplação do quanto um homem pode ser cruel. E não para defender quem ele supõe amar, mas para proteger a si mesmo.

Em meio a tudo, a direção de Noyce trabalha com uma ideia sombria, fria, como se não estivesse interessada em fazer escolhas mais envolventes. Por mais que já se saiba qual será o fim da personagem de Clarke, toda a sua trajetória é proposta em uma tonalidade azulada dessaturada. A presença da morte por meio dessa opção estética do diretor efetuada pela fotografia de Elliot Davis (de Crepúsculo) e pela colorização na pós-produção acaba por dar a Crime e Desejo, ao menos imageticamente, um ar irremediável. É como se não houvesse qualquer intenção de conversar com o espectador e propor um diálogo mais rico.

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Do mesmo modo, parece não existir qualquer alternativa na decupagem de Noyce que seja capaz de indicar uma construção mais favorável à potência da história. Quase tudo é pensado em planos mais fechados; não há muita abertura nas imagens; e os closes são um tanto quanto de cartilha, como se fossem utilizados porque, naqueles momentos, era o que normalmente se faria.

Essa postura, aliás, pode ser fruto da década de 2010 do diretor, período em que ele esteve à frente de filmes para a televisão e de alguns episódios de séries pouco badaladas. A estrutura de obra para TV transparece em Crime e Desejo. Parece haver um somatório de escolhas que fazem com que Above Suspicion (título original) não ganhe corpo.

Pólvora molhada

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Felizmente, o texto de Gerolmo é detalhista até mesmo para sugerir subtextos — algo que, geralmente, parte da direção. Toda a degradação do caráter de Mark, seja pessoal ou profissional, encontra ecos em uma postura masculina extrafilme que é recorrente. Susan é alguém fragilizada — não frágil — e que, por isso, acaba sendo aproveitada até não servir mais. Sua fragilidade, no caso, existe, em boa medida, por ser mulher em meio a um mundo machista e, por essa perspectiva, ameaçador. O espancamento que ela sofre nas mãos de Cash (Johnny Knoxville) é só um detalhe dessa situação que vem à tona enquanto outros tantos ficam nas entrelinhas e são subaproveitados pela direção — como a aceitação da esposa de Mark (Kathy — interpretada por Sophie Lowe) em relação aos feitos dele.

Crime e Desejo pode, sem dúvida, ser visto como um bom filme, mas a impressão maior é que o seu azulado, toda a sua frieza, tem uma carga explosiva que nunca explode de fato. É muita pólvora no roteiro que acaba molhada e praticamente descartada por uma condução que parece estar muito mais interessada em contar a história escrita do que propor qualquer tipo de experiência para além do que está no texto.

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Há até referências, em síntese, soltas e desconceitualizadas, como ao clássico O Demônio das Onze Horas (de Jean-Luc Godard, 1965), que comprovam o caráter pouco autêntico do filme. Felizmente, a boa atuação de Clarke e um desfecho que, apesar de avisado, é consistente ao finalizar a desconstrução de Mark com propriedade compensam — pelo menos um pouco — a falta de personalidade do todo.

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Crime e Desejo está disponível na Netflix.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Canaltech