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Crítica | 1917 é um filme de guerra que carrega a urgência de um mundo em paz

Por| 24 de Janeiro de 2020 às 09h19

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Universal Pictures
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É verdade que o virtuosismo técnico de 1917 salta aos olhos rapidamente. Desde o início, quando a paz de um campo aberto e silencioso – que parece remeter ao A Árvore da Vida ou até mesmo ao Além da Linha Vermelha (ambos de Terrence Malick, 2011 e 1998 respectivamente) – lentamente dá espaço para a intromissão humana, pode ser perceptível a ideia da direção de Sam Mendes. Os Cabos Blake (Dean-Charles Chapman) e Schofield (George MacKay) são apresentados ali mesmo, sonolentos. Eles despertam junto à mudança de direção da câmera, que passa a segui-los sem interrupções aparentes. A partir de então, a estrutura pensada por Mendes atua a favor de um todo muito coeso, fechado em si mesmo. Dessa maneira, passa a ser praticamente impossível pensar o filme de outra forma.

Não que exista algum tipo de prioridade dada à técnica em detrimento da história. A questão é que todo o esqueleto do que se passa está erguido sobre as bases de um método de decupagem irrepreensível e funcional aqui. Por exemplo: por mais que Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância) – de Alejandro G. Iñárritu (2015) – tenha o teatro como pano de fundo e esta arte representativa não dê direito a cortes como o cinema, seu formato em plano-sequência é pura demonstração de habilidade, o que pode, infelizmente, contaminar a experiência frente ao excelente roteiro.

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Cuidado! A crítica pode conter spoilers!

"Da árvore do silêncio pende seu fruto: a paz." – Arthur Schopenhauer

Unidade

A maior conquista de 1917, assim, é, justamente, renunciar a um roteiro complexo para dar espaço a um exercício imersivo. Tanto que enquanto o texto do filme de Iñárritu foi indicado a tantos prêmios específicos em seu caminho (42 nas contas da Internet Movies Database – a IMDb) e vencedor da maioria (inclusive do Oscar 2015) o de Mendes contabiliza duas indicações. Isso não quer dizer que a história que segue Blake e Schofield é ruim ou algo do tipo; a questão é que ela está a serviço de um propósito maior. Ao transformá-la em algo tão contundente, Mendes não somente demonstra controle artístico sobre o trabalho, como também desmente qualquer acusação de exibicionismo. A escolha técnica da direção foi a favor da criação de uma harmonização necessária.

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Dentro dessa unidade, a capacidade da direção de fotografia de Roger Deakins em iluminar e justificar sua iluminação é algo quase inacreditável. Se, a princípio, Deakins concebe o citado campo aberto e os primeiros contatos visuais do espectador com as trincheiras utilizando possivelmente apenas luz natural, é ao aquecer tudo no terceiro ato que sua assinatura brilha: o espetáculo visual de luzes, sombras e cores em meio a uma cidadela em chamas é tão hipnotizante quanto o dito método escolhido por Mendes. É nesse ponto, inclusive, que também se destaca com mais intensidade a música de Thomas Newman, construindo uma unidade condensada, prestes a implodir em meio às explosões.

Atitudes que falam

De todo modo, mesmo que o roteiro esteja à mercê de uma proposta e esta seja pensada por causa do texto, é interessante perceber o quanto, assim mesmo, há um lado humano em 1917 que pode parecer ausente em Dunkirk (de Christopher Nolan, 2017). Claro, são duas propostas diferentes: se Nolan desejou inserir o público na guerra, Mendes quer fazer com que esse mesmo público corra com seus protagonistas para evitar um conflito.

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Há, no filme em questão, uma vontade de viver e sobreviver (nessa ordem ou não) que permanece sempre acima de tudo o que está ao redor: as vacas mortas propositalmente pelas tropas inimigas são as mesmas que deram o leite que haveria de alimentar uma bebê. Aliás, da mesma forma que uma jovem francesa não tinha noção alguma sobre uma criança e mesmo assim seu instinto passou a ser o de cuidar, os irmãos de farda não negaram auxílio a um colega desconhecido – o trecho em que, com o caminhão atolado, percebem o desespero nas ações de Schofield é revelador sobre tudo isso.

A urgência de um mundo em paz

1917, nesse sentido, é quase uma desconstrução. É, de fato, um filme de guerra, mas acaba por fugir dela a todo instante. A intenção, desde o início, parece ser sustentar os horrores do combate como um fantasma, uma assombração que pode atacar a qualquer momento – como Blake é atacado sem que seja mostrada a situação inicial. A esse ponto, com a intenção de entregar uma carta para evitar a morte de 1.600 homens, Schofield acaba por carregar também a função particular de dar uma notícia indesejada ao Tenente Blake (Richard Madden). É quase como se, lá em 1998, o Capitão Miller precisasse encontrar o Soldado Ryan não para salvá-lo como o filho sobrevivente, mas para falar da morte de sua mãe.

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A melhor notícia – fica registrado – é o fim do conflito. Não é a vitória; não é uma conquista; não é mais uma dezena de mortes. Por mais que outros filmes tenham demonstrado a boa sensação de fim-de-guerra, 1917 consegue carregar, em seus dois falsos planos-sequências e durante quase duas horas, a urgência de um mundo em paz. E quem finda em quietude é o cansado Schofield, que cumpre a sua função e, finalmente, colhe da árvore do silêncio – do seu próprio e merecido silêncio.