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Crítica | Com Black is King, Beyoncé cria obra vanguardista e necessária

Por| 15 de Agosto de 2020 às 09h20

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Álbum visual é quando o videoclipe encontra o cinema, com as músicas de um álbum ligadas narrativamente através de um grande clipe que, ao final, torna-se um longa-metragem. Black is King, como o álbum visual que é, explora o que há de mais potente em ambas as formas de audiovisual: o cinema permite a criação e expansão de uma narrativa, enquanto o videoclipe não só incorpora a música ao cinema (criando uma peça musical), como também permite que se faça um trabalho vanguardista, complexo e conceitual sem que necessariamente acabe nichado como a maioria dos filmes que se arriscam em uma linguagem mais hermética. Além disso, a música é historicamente uma das mais poderosas ferramentas pedagógicas, sobretudo na cultura dita popular e tradicional.

Black is King é o encontro do elitismo cultural e do popular e, pela simples união desses opostos, prova que ambas as categorias são vazias: não é válida essa categorização que leva muitas pessoas a distinguir entre alta e baixa arte, o culto versus o popular. Arte é arte e essa tautologia está estampada no trabalho de Beyoncé. E como uma boa arte de vanguarda, não está livre de polêmicas.

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Há muito a se discutir sobre Black is King a partir dos mais diversos pontos de vista, e há algumas perspectivas que obviamente não me cabem por motivos de lugar de fala, então precisarei me ater às questões mais técnicas de Black is King, que, com ou sem o conteúdo que propõe, já é um dos melhores (se não o melhor) filmes do ano.

Atenção! A partir daqui, a crítica pode conter spoilers.

A forma

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Inspirado na narrativa shakespeariana de Rei Leão, Black is King acompanha a trajetória de Simba, passando pelos momentos mais marcantes da animação, mas sem se ater a questões de fidelidade. Beyoncé interpreta uma figura divina que, justamente por essa condição, é onipresente e onisciente, o que permite que ela se insira em cena e justifique sua voz na narrativa.

Para contar essa história, o visual de Black is King é tremendamente influenciado pelo afrofuturismo, que abre espaço para que seja incorporado, seja no figurino ou no ambiente, enfim, em toda a mise-en-scène, elementos de qualquer período histórico. É nada sutil o modo como o figurino mistura trajes e adornos tradicionais da cultura africana com alta costura, um encontro perfeito entre o cultural-histórico e a moda-conceitual.

Mais do que nos filmes de estrutura clássica, Black is King faz uso de toda a potência de libertação das amarras das narrativas padrões ao optar pela linguagem metafórica do videoclipe, que geralmente precisa condensar muito conteúdo em pouquíssimo tempo, o da duração de uma música. Assim, muito do que quer ser dito para além da letra da música precisa estar impresso nos elementos de cena: cenário, direção de arte, fotografia (iluminação), disposição dos personagens no quadro, figurino... Isso tudo torna o filme incrivelmente denso e muito mais complexo e repleto de camadas.

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Essa complexidade toda, potencializada ainda mais pela estética afrofuturista e vanguardista, poderia transformar Black is King em uma obra de difícil acesso e baixíssimo apelo popular, fadada a ser cultuada por um grupo reduzido de cinéfilos, como acontece com produções como A Montanha Sagrada, de Alejandro Jodorowsky. O fato de ser um produto artístico de uma diva pop e de o conteúdo das letras ser bastante claro e direto, por outro lado, cria o equilíbrio perfeito para o filme. O encontro da complexidade com o simples, do cult com o pop, faz de Black is King um marco artístico há muito não visto, uma declaração de que a arte é democrática e não um produto para um grupo proporcionalmente minúsculo de supostos especialistas.

As polêmicas

Embora a crítica seja, essencialmente, o compartilhamento de impressões pessoais, em alguns casos essas impressões não têm espaço. Nesta parte do texto irei me ater a discussões que foram expostas por pessoas com lugar de fala e que me fizeram refletir sobre a forma de Black is King.

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Ao final do filme, Black is King mostra a bandeira dos EUA com sua cores alteradas, o que me fez entender que o filme é direcionado muito mais aos afro-americanos que aos africanos, mas é importante ressaltar que a crítica africana tem acusado Black is King de apropriação cultural. Além disso, muitos não têm visto com bons olhos a opulência da obra ou mesmo o fato de ser uma produção Disney.

Esses e outros tantos pontos são de suma importância e merecem todas as discussões honestas que possam ser desenvolvidas. Por outro lado, gostaria de fazer um convite a todos os espectadores: Black is King precisa ser assistido sem condescendência e com um olhar crítico, mas sem deixar que isso atinja o extremo de impedir o reconhecimento do verdadeiro impacto que ele causa: representatividade, justiça histórica e empoderamento.

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Como qualquer obra de vanguarda e que propõe uma mudança do status quo, Black is King é alvo de muitas críticas e, igualmente, elogios. Mas também, pelos mesmos motivos, trata-se de um grande passo revolucionário e capaz de mostrar mais uma vez o poder da arte.

Agradeço aos colegas do Penumbras (Clayton, Sérgio e Naiana), a Jeff Augusto e a Igor Gomes pelos diálogos que ampliaram minhas percepções de Black is King.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Canaltech