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Crítica | A Vida em um Ano tem gosto de remédio para fígado

Por| 09 de Fevereiro de 2021 às 08h20

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Alguns filmes, apesar de não terem uma história original ou algo interessante a dizer, são carregados pela forma, pela condução da direção. O trabalho de dirigir uma produção, portanto, tem força para sustentar qualquer texto, porque é uma função de propor ideias, de sensação e de alcançar uma experiência. A Vida em um Ano (Life in a Year no original), por outro lado, é sustentado pelo nada.

O que o roteiro dos estreantes em longas-metragens Jeffrey Addiss e Will Matthews faz é reciclar romances trágicos, alguns bem recentes como A Culpa é das Estrelas (de Josh Boone, 2014) e Dente de Leite (de Shannon Murphy, 2019), e temperar com cascalho. Para mais, a direção de Mitja Okorn (de Planeta Singli, 2016) consegue adicionar algumas doses de remédio para fígado na massa e servir tudo com o disfarce de uma cobertura multicor, como as perucas de Isabelle (Cara Delevingne).

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Atenção! Esta crítica pode conter spoilers sobre o filme!

Um desastre batido no liquidificador 

Acontece que cada personagem de A Vida em um Ano é um estereótipo que chega a ser preconceituoso. A família do protagonista (Daryn — interpretado por Jaden Smith), por exemplo, é composta pelo pai durão (Xavier — Cuba Gooding Jr.) e pela mãe acolhedora (Catherine — Nia Long). Ele, adepto do foco e do trabalho a todo custo. Ela... uma decoração, na prática, existindo somente como muleta emocional.

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É verdade que pode ser extraída alguma interpretação razoável da utilização desses personagens da forma que são exibidos. De repente, a possibilidade de que o subtexto de uma família negra que escalou socialmente pode ser interpretado de maneira romântica. Por outro lado, essa romantização é um desserviço, visto que não basta ter foco, organização e traçar planos. São necessárias oportunidades. O que Addis e Matthews fazem é construir um universo onde a exceção se torna regra.

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Isso está, inclusive, na covarde inversão proposta. Aqui, quem não tem futuro — em todos os sentidos — é Isabelle, a menina branca de olhos claros; quem recebe insultos da família do outro é ela. Isto em uma cena que parece influenciada reversamente pelo clássico Adivinhe Quem vem para Jantar (de Stanley Kramer, 1967). O filme de Okorn ainda consegue bater tudo em um liquidificador, expondo tanto a personagem de Delevingne quanto a babá drag queen Phil (Chris D'Elia) aos ataques grosseiros de Xavier.

Em alguma medida, talvez seja possível imaginar os roteiristas se divertindo ao escrever, achando o máximo a subversão. E não que tenha existido maldade no trabalho, mas, provavelmente, faltou tato, conhecimento de causa e pensamento crítico. Nesse sentido, a sitcomUm Maluco no Pedaço, que traz personagens negros ricos, está cheia de situações imensamente mais relevantes do que qualquer trecho de A Vida em um Ano. Inclusive, Xavier, guardadas as devidas proporções, tem um paralelo de vida considerável com o tio Philip (James Avery) — apesar da construção desastrosa da personagem de Gooding Jr..

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Um nó difícil de passar pela garganta 

E então... o romance. A partir dele, pode ser bem complicado ter que levar em consideração a atuação do jovem Smith. O moço, que geralmente tem a desenvoltura de uma colher, até consegue alcançar alguns momentos interessantes, como quando percebe a morte de Isabelle ao seu lado. Mas é tudo tão deslocado pela visão desinteressante de Okorn que nem mesmo alguns bons instantes são realçados por química.

Os planos acidentais do diretor, que não consegue nem se utilizar de closes com a intenção de expor sentimentos dos seus personagens, impedem que a relação entre Daryn e Isabelle progrida. Aliás, Okorn e sua equipe não têm mesmo noção do que possuem em mãos. Uma amostra muito clara é Phil, que, embora não seja mostrado atuando, está sempre montado como sua drag queen — o que indica que a confusão é, de fato, generalizada, ao confundirem profissão com identidade.

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Não bastasse o nada (ou quase isso) que é A Vida em um Ano, existem problemas extrafilme que merecem alguma atenção. Gooding Jr. está em julgamento por abuso sexual, tendo sido denunciado por pelo menos 30 mulheres. O próprio D'Elia, que é acusado de solicitar nudes de menores, também tem nas costas acusações de mulheres adultas sobre se masturbar na frente delas sem consentimento. É estranho que Will Smith (pai de Jaden) e Jada Pinkett Smith (a mãe) sejam produtores executivos de uma obra que dá visibilidade a dois assediadores — sendo um deles com denúncias de pedofilia.

De todo modo, o parágrafo anterior é para dizer que o filme não precisava de pervertidos para conseguir ser ruim. Ele o seria de qualquer jeito. Além de ser um trabalho estereotipado — Daryn tem um amigo (Sammy — JT Neal) cujo único traço de personalidade é um passado de gordo —, é mal escrito, mal dirigido e mau porque existe. Minha noiva, grávida, que chorou recentemente vendo uma família aleatória se encontrando em um hotel, com Life in a Year sentiu uma absoluta indiferença.

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Pelo menos assistimos acompanhados e, talvez por isso, eu, depois de engolir os cascalhos dessa massa insossa com um sinestésico gosto de remédio para fígado, tenha pegado leve no texto.

A Vida em um Ano está disponível no Amazon Prime Video.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Canaltech